segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Resposta do Prof. Carlos Nougué a uma pergunta acerca da possibilidade de milagres fora da Igreja

“Caríssimo Sr. XXX:
Responder-lhe-ei por partes.
1) Leia-se, antes de tudo, o dito por Santo Tomás de Aquino em Quaestiones Disputatae de Potentia Dei, q. 6, a. 5.
OBJEÇÃO 5. Lê-se nas histórias (referidas por Agostinho em A Cidade de Deus, X, 26) que uma vestal virgem, para mostrar que conservara seu pudor, carrega água do Tibre num vaso furado, e todavia a água não escorre; o que não se pôde fazer senão porque a água era impedida de escorrer por um poder que não era natural; o que na divisão das águas do Jordão e em sua detenção é claramente um milagre. Por isso parece que os demônios podem fazer milagres.
RESPOSTA DE SANTO TOMÁS. 5. Não está excluído que seja para recomendar a castidade que o verdadeiro Deus tenha feito por seus bons anjos um milagre desse gênero, retendo a água, porque, se havia alguns bens entre os pagãos, tinham vindo de Deus. Mas, se isso fosse feito pelos demônios, tal não se opõe ao que foi dito. Pois deter ou ser movido localmente depende de um mesmo princípio em gênero, porque o que é movido para um lugar se detém por tal natureza. É por isso que, assim como os demônios podem mover os corpos localmente, assim também podem retê-los por movimento. E no entanto isso não é um milagre, como quando feito divinamente, porque, segundo o poder natural do demônio, pode chegar-se a tal efeito.”
2) Em resumo, diz aí o nosso Santo duas coisas: uma, que os demônios podem fazer coisas que se assemelham a milagres mas não o são; outra, que Deus, pelo ministério dos anjos, podia fazer milagres entre os pagãos (ou seja, não apenas entre o povo eleito), assim como, embora ordinariamente a salvação das almas se desse entre os judeus, também se dava, extraordinariamente, entre os pagãos, como sempre disseram nossos Doutores. Santo Agostinho, por exemplo, pensava que Cícero se teria salvado, o que se provaria pelo que disse antes de morrer: “Causa causarum, miserere mei” (Causa das causas, tem misericórdia de mim).
3) Ademais, como diz o sacerdote que lhe escreveu, parece que “se encontram alguns casos de milagre entre os ortodoxos, por exemplo para testemunhar a verdade do Novo Testamento diante de um judeu” – o que de algum modo concorre para o bem da Igreja. – Aliás, todos os que se salvaram antes de Cristo (judeus ou pagãos) não o fizeram senão em ordem a Cristo, que é o eixo dos tempos. E os que extraordinariamente se salvam fora da Igreja depois de Cristo (o que é afirmado, entre outros, pelo Concílio de Trento) tornam-se da Igreja no ato mesmo em que são salvos, razão por que não há contradição com o axioma “fora da Igreja não há salvação”.
4) Mas a melhor passagem de Santo Tomás de Aquino para entender o assunto ainda me parece a da Suma Teológica, II-II, q. 178, a. 2 (“Se os maus podem fazer milagres”), ad 3: “Por isso, os maus que ensinam falsas doutrinas [ou seja, os heréticos] não poderiam jamais fazer verdadeiros milagres para confirmar seu ensinamento, embora, às vezes, possam fazê-los em nome de Cristo, que eles invocam, e pela virtude dos sacramentos que administram”. E isso, que, como dito, sempre será extraordinário, Deus não o faz senão por algum bem, ou imediatamente da Igreja, ou porque se destina a cumprir a predestinação de quem atualmente não está no seio da Igreja, ou por qualquer outra razão que esteja entre os ocultos desígnios de Deus.
5) E, salvo engano, nunca nenhum Doutor nem, muito mais importante, nenhum documento do magistério infalível disse que absolutamente não poderia haver milagres fora da Igreja. E isso não fere de modo algum o princípio da contradição: assim como o que estando fora da Igreja se salva e entra neste mesmo momento para a Igreja, assim também um milagre fora da Igreja serviria de algum modo a ajudar a cumprir a salvação de algum eleito, que, insista-se, salvo pela graça da perseverança final, entra no momento mesmo da morte para a Igreja.
6) Ademais, a Igreja conciliar, ainda que por jurisdição precária (tese que desenvolverei oportunamente), ainda é parte da Igreja, conquanto se trate de parte tênue. Explico-o. Como dizia Pio XII, um assassino já perdeu por seu mesmo ato o direito à vida e à cidadania. Mas, digo, é preciso que o estado o julgue, lhe retire a cidadania e o condene à morte. Enquanto não o faz, tal assassino continua com a vida e a cidadania, ainda que só de certo modo, ou seja, em estado precário. Pois é, analogamente, o que me parece se passa com a Igreja conciliar: já perdeu ipso facto, por heresia, a jurisdição; mas ainda a preserva precariamente, por falta do devido julgamento, tudo o que pode concluir-se do dito no Código de 17. – Mas também me parece válida a analogia do Padre Álvaro Calderón: só se pode chamar católica à hierarquia conciliar de modo análogo a como um câncer pode dizer-se de quem o porta e padece.
7) Quanto pois a se é possível que Deus faça algum milagre por alguém da Igreja conciliar, parece que sim, ainda que sempre extraordinariamente. Reveja-se o dito por Santo Tomás: os heréticos podem fazer milagres “em nome de Cristo, que eles invocam, e pela virtude dos sacramentos que administram”. Apliquemos o dito ao caso da Igreja conciliar.
a) Quase todos invocam de algum modo o nome de Cristo.
b) Seus sacramentos, porém, suscitam dúvidas graves quanto à sua validade; mas tampouco pode dizer-se que sejam todos ou sempre inválidos. Trata-se de questão disputada – e árdua. Necessitaríamos de um papa para decidi-la infalivelmente. Mas ao menos por ora isto parece impossível.
c) Ademais, como diz o sacerdote que lhe escreveu, amiúde os milagres que os conciliares anunciam são falsos.
8) Por isso, e porque em último termo quem decide da veracidade ou da falsidade de um milagre é o magistério infalível, que hoje não temos, é que parece mais prudente que nos calemos diante de eventos de aparência miraculosa realizados em ambiente conciliar (a não ser, naturalmente, que se tenha prova em contrário).
UMA ÚLTIMA OBJEÇÃO. Escreve o Papa São Gregório Magno em suas Morais: “Por isto a Igreja despreza os milagres dos hereges, porque não reconhece neles coisa alguma de santidade” (20, 9).
RESPOSTA. Desprezar não implica, necessariamente, negar a realidade. Por isso mesmo é que, pouco antes do citado acima, escreve ainda o Santo Papa: “Mas às vezes os hereges também realizam sinais e milagres, a fim, porém, de que eles por isso possam receber as recompensas de sua correção e abstinência [...]”. – Ademais, também Santo Tomás diz, no referido artigo da Suma, que nenhum milagre operado mediante um mau católico ou mediante um herético é prova de sua santidade.
Espero tê-lo ajudado.
Em comunhão de orações,
C. N.”

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