sábado, 20 de junho de 2015

A necessidade das paixões

"O ser humano não consegue viver sem paixão. E a paixão é o estado no qual todos os seus sentimentos e idéias se encontram no mesmo espírito. Tu podes pensar, quase ao contrário, que é o estado em que um sentimento se torna todo-poderoso, um único sentimento que atrai a si todos os outros - um arrebatamento! Não, não querias dizer nada? Seja como for, é assim. Também é assim. Mas a força de uma tal paixão é imparável. Os sentimentos e as idéias só ganham continuidade quando se apóiam uns nos outros, na sua totalidade, têm de se orientar no mesmo sentido e arrastam-se uns aos outros. E o ser humano tenta por todos os meios, pela droga, pela ilusão, pela sugestão, pela crença, pela convicção, por vezes apenas recorrendo ao efeito simplificador da estupidez, criar um estado semelhante àquele. Acredita nas idéias, não por elas às vezes serem verdadeiras, mas porque tem de acreditar em alguma coisa. Porque tem de manter os afetos em ordem. Porque tem de tapar com alguma ilusão o buraco entre as paredes da vida, para não deixar que os seus sentimentos se espalhem ao vento. O caminho certo seria o de, em vez de se entregar a estados ilusórios, procurar pelo menos as condições da autêntica paixão. Mas, feitas as contas, embora o número de decisões que dependem do sentimento seja infinitamente superior ao daquelas que se podem tomar com a pura razão, e todos os acontecimentos decisivos para a humanidade nasçam da imaginação, só as questões da razão se mostram ordenadas de forma suprapessoal; para o resto, nunca se fez nada que mereça o nome de esforço comum ou que sugira sequer a consciência da sua desesperada necessidade."
(Robert Musil, Der Mann ohne Eigenschaften)