terça-feira, 19 de maio de 2015

A questão do aborto

“A espinhosa questão do aborto voluntário pode ser tratada de maneiras muito diversas. Entre os que consideram a inconveniência ou ilicitude do aborto, o tratamento mais freqüente é o religioso. Mas costuma-se responder que não se pode impor a uma sociedade inteira uma moral “particular”. Há outro tratamento que pretende ter validade universal, e é o científico. As razões biológicas, concretamente genéticas, são consideradas demonstráveis, conclusivas para qualquer um. Mas suas provas não são acessíveis à imensa maioria dos homens e mulheres, que as admitem “por fé”: quer dizer, por fé na ciência.
Creio que faz falta um tratamento elementar, acessível a todos, independente de conhecimentos científicos ou teológicos, que poucos possuem, de uma questão tão importante, que afeta milhões de pessoas e a possibilidade de vida de milhões de crianças que nascerão ou deixarão de nascer.
Esta visão há de fundar-se na distinção entre “coisa” e “pessoa”, tal como aparece no uso da língua. Todo mundo distingue, sem a menor possibilidade de confusão, entre “que” e “quem”, “algo” e “alguém”, “nada” e “ninguém”. Se se ouve um grande barulho estranho, me assustarei e perguntarei: “que aconteceu?” ou “que foi isso?”. Mas se ouço baterem à porta, nunca perguntareis “que é?”, mas “quem é?”.
Perguntar-se-á que tem isto a ver com o aborto. O que aqui me interessa é ver em que consiste, qual é sua realidade. O nascimento de uma criança é uma radical “inovação da realidade”: o aparecimento de uma realidade “nova”. Dir-se-á que deriva ou vem dos pais. Sim, de seus pais, de seus avôs e de todos seus antepassados; e também do oxigênio, nitrogênio, carbono, cálcio, fósforo e todos os demais elementos que intervêm na composição de seu organismo. O corpo, o psíquico, até o caráter, vem daí e não é rigorosamente novo.
Diremos que “o que” o filho é deriva de tudo isso que enumerei, é “redutível” a isso. É uma “coisa”, certamente animada e não inerte, em muitos sentidos “única”, mas afinal uma coisa. Sua destruição é irreparável, como quando se quebra uma peça que é exemplar único. Mas não é isso o que importa.
“O que” é o filho pode reduzir-se a seus pais e ao mundo; mas “o filho” não é “o que” é. É “alguém”. Não um “quê”, mas um “quem”, a quem se diz “tu”, que dirá em seu momento “eu”. E é “irredutível a tudo e a todos”, desde os elementos químicos até seus pais, e a Deus mesmo, se pensamos nele. Ao dizer “eu” enfrenta todo o universo. É um “terceiro” absolutamente novo, que se junta ao pai e à mãe.
Quando se diz que o feto é “parte” do corpo da mãe se diz uma insigne falsidade porque não é parte: está “alojado” nela, implantado nela (nela e não meramente em seu corpo). Uma mulher dirá: “estou grávida”, nunca “meu corpo está grávido”. É um assunto pessoal por parte da mãe. Uma mulher diz: “vou ter um filho”; não diz “tenho um tumor”.
A criança não nascida ainda é uma realidade “vindoura”, que chegará se não o detivermos, se não o matarmos no caminho. E se é dito que o feto não é um quem porque não tem uma vida pessoal, deveria ser dito o mesmo da criança já nascida durante muitos meses (e do homem durante o sono profundo, a anestesia, a arteriosclerose avançada, a extrema senilidade, o coma).
Às vezes se usa uma expressão de refinada hipocrisia para denominar o aborto provocado: diz-se que é a “interrupção da gravidez”. Os partidários da pena de morte têm resolvidas suas dificuldades. A forca ou o garrote podem chamar-se “interrupção da respiração”, e bastam uns poucos minutos. Quando se provoca o aborto ou se enforca, mata-se alguém. E é uma hipocrisia ainda considerar que haja diferença segundo o lugar do caminho em que se encontra a criança que vem, a que distância de semanas ou meses do nascimento vai ser surpreendido pela morte.
Com freqüência se afirma a licitude do aborto quando se julga que provavelmente o que vai nascer (o que ia nascer) seria anormal física ou psiquicamente. Mas isto implica que o que é anormal “não deve viver”, já que essa condição não é provável, mas certa. E dever-se-ia estender a mesma norma ao que chega a ser anormal por acidente, enfermidade ou velhice. E se alguém tem essa convicção, deve mantê-la com todas as suas conseqüências; outra coisa é agir como Hamlet no drama de Shakespeare, que fere Polônio com sua espada quando está escondido atrás da cortina. Há quem só se atreva a ferir a criança quando está escondida – se pensaria protegida – no seio materno.
E é curioso como se prescinde inteiramente do pai. Atribui-se a decisão exclusivamente à mãe (mais adequado seria falar da “fêmea grávida”), sem que o pai tenha nada a dizer sobre se deve-se matar ou não seu filho. Isto, logicamente, não se diz, passa-se por cima. Fala-se da “mulher objeto” e agora se pensa na “criança tumor”, que se pode extirpar como um crescimento nojento. Trata-se de destruir o caráter pessoal do humano. Por isso se fala do direito a dispor do próprio corpo. Porém, à parte que a criança não faz parte do corpo de sua mãe, mas é “alguém corporal implantado na realidade corporal de sua mãe”, esse suposto direito não existe. A ninguém se permite a mutilação; os demais, e em último caso o poder público, o impedem. E se eu quiser pular de uma janela, acodem a polícia e os bombeiros e pela força me impedem.
O cerne da questão é a negação do caráter pessoal do homem. Por isso se esquece a paternidade e se reduz a maternidade a suportar um crescimento intruso, que se pode eliminar. Descarta-se todo uso do “quem”, dos pronomes tu e eu. Tão logo aparecem, toda a construção erguida para justificar o aborto desmorona como uma monstruosidade.
Não se tratará precisamente disto? Não estará em curso um processo de “despersonalização”, quer dizer, de “desominização” do homem e da mulher, as duas formas irredutíveis, mutuamente necessárias, em que se realiza a vida humana? Se as relações de maternidade e paternidade restam abolidas, se a relação entre os pais resta reduzida a uma mera função biológica sem duração além do ato de geração, sem nenhuma significação pessoal entre as três pessoas implicadas, que resta de humano em tudo isso? E se isto se impõe e generaliza, se ao final do século XX a Humanidade vive de acordo com esses “princípios”, não terá comprometido, quem sabe até quando, essa mesma condição humana? Por isto me parece que a aceitação social do aborto é, sem exceção, o mais grave que aconteceu neste século que vai se aproximando de seu final.”
(Julián Marías, La Cuestión del Aborto)