sábado, 31 de janeiro de 2015

Islamismo e laicismo

“Um amável leitor me pede que explique mais detalhadamente essa aliança anticrística entre islamismo e laicismo que mencionava em um artigo anterior. Permitir-me-ei ilustrar tal explicação com citações de um irresistível romance de Chesterton que aborda profeticamente essas questões, A taberna errante, dominada pela figura de lord Ivywood, um líder liberal deslumbrado com o progresso humano. A Ivywood move um secreto aborrecimento do cristianismo, que considera uma religião contrária ao progresso; para erradicá-la, propõe mui velhacamente ao Parlamento um plano de modernização da Inglaterra, começando pelo fechamento das tabernas (medida que encobre seu ódio às alegrias cristãs, que sempre se congregaram ao redor do vinho). Assim age o laicismo: envolve-se em conversas fiadas reformistas e modernizadoras, invoca razões de higiene pública e progresso social; mas tais espalhafatos não são senão balbucios com os quais camufla seu ódio constitutivo e medular à fé cristã.
Para ajudar a camuflar esse ódio, Ivywood se mostra partidário de uma “competição de civilizações” que expõe com palavras melífluas e ecumênicas: “Vivemos em uma época em que os homens começam a dar-se conta de que um credo tem tesouros para os outros credos, uma religião tem segredos que revelar às outras, uma fé pode comunicar-se com outra e uma Igreja ensinar outra Igreja. (...) Por que não vamos admitir que por sua vez o Islã pode nos oferecer algo precioso, algo suscetível de semear a paz em milhares e milhares de lares?” Ivywood mostra-se convicto de que o islamismo “é a religião com mais potencial progressista que existe”; e de que pode facilitar “o crescimento perpétuo para a perfeição infinita”, que é o fim último da religião democrática. Naturalmente, a fascinação de Ivywood pelo islã não é senão o disfarce com o qual oculta seu afã por demolir o patrimônio espiritual do cristianismo. Ivywood vê no islã um catalisador; ou, dito mais exatamente, uma antítese hegeliana que facilitará, uma vez derrubadas as barreiras cristãs, uma síntese fundada sobre “a evolução, a relatividade e a expansão progressiva do pensamento”.
Como todo progressista, Ivywood pensa que “o mundo está mal feito”; e, em um rasgo de endeusamento, afirma categórico: “E eu vou refazê-lo à minha vontade”. Em uma passagem particularmente espantosa da novela, Ivywood mostra sua aversão à arte clássica e declara-se por uma arte em que se vão esfumando as figuras, até concluir na pura abstração. Seu interlocutor discorda: “Tudo se pode combinar até um certo ponto, mas além desse ponto a identidade desaparece e com ela tudo mais”. Mas isso é o que Ivywood deseja: “Quero a ruptura de barreiras e nada mais”. Tal confissão aflige e horroriza seu interlocutor: “Mas a ruptura de tais barreiras... talvez signifique a destruição de tudo!” Ao que Ivywood assente, sonhador: “É possível!” Por sorte, para frustrar o desígnio de Ivywood surge Patrick Dalroy, um capitão irlandês, fiel à alegria das tabernas e à fé de seus ancestrais, que sabe que as sociedades entram em colapso quando renegam sua tradição espiritual e cultural. Quando lhe perguntam pelo “grande destino” que aguarda o Império Britânico, Dalroy o resume em quatro episódios: “Vitória sobre os bárbaros. Emprego dos bárbaros. Aliança com os bárbaros. Conquista pelos bárbaros”.
E é que, de fato, não há outro destino senão a conquista pelos bárbaros para os povos que renegaram sua tradição. Por isso laicismo e islamismo, o Jano bifronte da Nova Ordem Mundial, necessitam um do outro como unha e carne.”
(Juan Manuel de Prada, Islamismo y Laicismo)