segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Duplicidade

Seja vosso falar sim, sim; não, não. Tudo o que disso passa vem do Maligno” (Mt 5, 37)

“Um caso de bilingüismo, como de serpente. Ontem foi fustigar o fantasma das famílias católicas e numerosas de antanho, como se os fantasmas perturbassem em algo a mudança – que parece definitiva e irrevogável – dos hábitos e dos princípios sobre os quais aqueles se cimentam; hoje foi “dá consolo e esperança ver tantas famílias numerosas que acolhem os filhos como um verdadeiro dom de Deus”. Cremos haver falado alguma vez desta surpreendente virtualidade – já que não virtude – da glote de Francisco. A graça gratis data da bilocação, de que dão testemunho as biografias de vários santos, transforma-se nele em notória bilocução. São habilidades adquiridas na escola daquele santo doutor e fundador de ímpar progênie: são Perón.
Mas não somos tão simplórios para aceitar as desculpas de um farsante consumado. Primeiro, porque não cremos – como tantos que se esmeram em cobrir as vergonhas do rei desnudo – que suas palavras sobre a família cunicular devam ser situadas no contexto de sua recente viagem às Filipinas, com o drama da pobreza extrema diante de suas retinas, etc. etc. O verdadeiro contexto das palavras de Bergoglio são seus irritantes dislates de cada dia, que autorizam a presunção de que sua demasia (esse “mais” que excede a límpida locução esperada de um pontífice) vem do subterrâneo. E suas palavras aludiam a famílias católicas, numerosas, como se costumava outrora, filhas daquela Igreja que todavia não havia abraçado as novidades conciliares, a mesma que incita as habituais e coléricas repreensões do pontífice. Como o fez na ocasião desta última viagem, por farta vez:
Faz tempo se dizia que os budistas iam ao inferno. Mas também que os protestantes, quando eu era menino, iam ao inferno, é o que nos ensinavam. E recordo a primeira experiência de ecumenismo que tive: tinha quatro anos ou cinco e ia caminhando pela rua com minha avó, que me levava pela mão, e na outra calçada iam duas mulheres do Exército da Salvação, com esse chapéu que já não se usa e com esse coque. Eu perguntei: “Vovó, essas são monjas?” E ela me respondeu: “Não, são protestantes, mas são boas!” Foi a primeira vez que ouvi falar bem das pessoas que pertencem a outras confissões. A Igreja cresceu muito no respeito às demais religiões, o Concílio Vaticano II falou sobre o respeito a seus valores. Houve tempos obscuros na história da Igreja, deve-se dizê-lo sem vergonha...
Certamente, disse-o sem vergonha. Mas o mais grave do discurso sobre as famílias numerosas, pouco notado em geral e bem apontado em um comentário que nos enviaram a nossa entrada anterior, estriba-se na reinterpretação trapaceira que Bergoglio propicia da Humanae vitae, aquela Encíclica tão resistida de Paulo VI cujo objeto foi assinalar a ilicitude dos métodos contraceptivos, e que Bergoglio refunde como mera condenação do neomalthusianismo. “Havendo relativizado este pronunciamento magisterial, procede a levar a questão [do uso de contraceptivos] ao foro interno”. Já o havia feito seu finado amigo íntimo, o turbulento cardeal Mejía, desde as páginas de sua infame revista Critério nos mesmos dias da publicação daquela Encíclica: “o ensinamento da Sé romana não é um absoluto” porque o da bioética “é a zona mais crepuscular e delicada do exercício do Magistério”, pois embora a Igreja “tenha o direito de proclamar ensinamentos que se refiram à lei natural (...) entramos em uma zona onde o progresso dos conhecimentos humanos, as limitações culturais e as transformações da história têm sua parte”. “O limite – termina Mejía – não é imposto à consciência, mas brota, no ensinamento da Encíclica, das raízes da consciência mesma”. Francisco recolheu o motivo: “a recusa de Paulo VI não se referia a problemas pessoais, sobre os quais pedirá depois aos confessores que sejam misericordiosos e que compreendam as situações”, mas ao neomalthusianismo. Não só têm a ousadia de afirmar que a lei não está nas coisas mas no sujeito, que a consciência é infalível e que um ato mau por seu objeto pode deixar de sê-lo segundo as circunstâncias (e que o pecado está nas ideologias e nos programas, mas não nos atos pessoais), mas pretendem fazer cúmplice desses mesmos e venenosos erros o Magistério. E de passagem, para alívio da multidão, entreabrem-se as comportas de uma mudança de doutrina a respeito dos contraceptivos.
Isso sim: no dia seguinte, elogiando as famílias numerosas.”

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