sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A maldade insolente

“Disse: ‘digo o que penso’. E isto é o que penso, em primeiro lugar: que o mundo em que vivemos chegou a um nível tão alto de maldade impune, que está clamando ao Céu por castigo. E isso é para mim um sinal, embora exterior à Revelação Cristã. Um sinal que todo homem de mente sã – se é que ainda existe algum – está em condições de reconhecer: que ‘isto, assim como está, não pode continuar’.
Que o ‘Mundo’ seja mais mau hoje do que antes é algo que talvez se me poderia objetar: ‘... o mundo sempre foi mau.’ Embora creia eu que se possa provar que o mundo hoje seja mais mau, que chegou a conhecer as ‘profundezas de Satanás’ (Ap. 2, 23), de qualquer modo, não é isso o que sustento aqui. Digo outra coisa. Digo que a maldade é impune; e, isto sim, como nunca o foi antes. Se o que uma mente sã entende por ‘maldade’: adultério, perversão contra a natureza, filicídio, escândalo dos pequenos, latrocínio do pobre, traição, impiedade, fraude... se todas essas coisas são realmente males, quem não concordará que tudo isso hoje é impune? E isso, não por desídia ou debilidade, mas sistematicamente? É, portanto, mais que uma mera impunidade: é o incentivo ao mal.
É a maldade insolente, de que fala o tango de Discépolo. Porque todos os erros que mencionei são considerados no mundo atual direitos, ‘direitos humanos’. A maldade é, portanto, mais que impune, incentivada... e a virtude e o bem são punidos. Que entendo aqui por ‘virtude’?
Precisamente, os contrários dos mencionados: a fidelidade da mulher, a lealdade ao chefe, a veracidade, o amor filial e paterno, a honestidade, o sacrifício... todas essas coisas para castigar as quais o mundo, embora não tenha usado de capangas armados, difundiu a zombaria e o escárnio. E, além disso, a ameaça de condenação legal contra quem quer que, por dever de estado, pretenda corrigir até essas virtudes a natureza rebelde de algum súdito.
E por que isso é um ‘sinal’, sinal de iminência? Porque o é da proximidade de um Juízo. De um Juízo último e ‘terminal’, como última e terminal é a Iniqüidade a que chegou uma justiça humana que incentiva o mal e castiga o bem, sistematicamente.
Quando estudava em Filosofia o tema da Justiça, ocorreu-me a idéia de que a realidade da Injustiça no mundo era uma prova, uma prova a mais – uma ‘sexta via’ –, da existência de Deus. Porque é prova da necessidade do Juízo. Porque a injustiça, ou seja, ‘o castigo dos bons e o prêmio dos maus’, é algo que nossa consciência moral nos indica que não pode ser. Mas, mesmo assim, é. Portanto exige um ato de reparação que restitua a realidade moral ao equilíbrio da ordem. E como sempre existiu injustiça no mundo, e como essa correção não acontece sempre no mundo, deve haver uma correção ‘fora do mundo’. Mas esse ‘fora do mundo’ me levava antes à Transcendência divina. Porque a justiça divina sempre corrigiu algo. A remissão a uma instância sobrenatural restituidora da ordem se explicava pelos ‘resquícios’ do que a justiça humana não corrigia. E então cabia esperar por uma restituição no ‘além’. E também se podia esperar que a justiça humana corrigisse diferidamente seus erros: aquilo que na injustiça da honra violada chamávamos o ‘juízo da história’. Mas agora a justiça humana não corrige mais nada. Porque a injustiça já não é parcial e sim, ‘global’... e sistemática.
Isso significa que o Juízo divino se aproximou. A correção das injustiças parciais podia esperar por um juízo ‘no além’ ou, ainda, no futuro histórico. Hoje já não é assim: a ordem da Transcendência se aproximou e já ‘toca’ a ordem do terreno e histórico. Quando as injustiças eram parciais, de cada uma delas se podia dizer: ‘... esta injustiça, esta iniqüidade, este pecado, clama ao Céu’. A esse Tribunal se diferia, como a uma Ordem Final, a restituição. E o Céu nem sempre contestava o clamor, na história. O Céu ‘podia esperar’, porque a justiça humana podia todavia corrigir algo, e porque dava tempo à correção do iníquo: ‘Não se atrasa o Senhor... mas usa de paciência para convosco’.
Mas hoje já não são injustiças parciais as que clamam ao Céu: hoje é uma Injustiça total e irredimível, porque veste com o manto da Justiça (direitos ‘humanos’) o que é sua mais diametral oposição. O que hoje clama ao Céu é o Mundo como totalidade: é o massacre dos inocentes no seio materno, amparado como um ‘direito’, é a difusão universal do pecado de Sodoma, incentivado como ‘opção legítima’, é o latrocínio dos pobres pelos ricos, justificando-se por trás das ‘leis’ da economia.
Não, o Céu já não pode esperar, o Céu não pode fazer ouvidos surdos para o clamor.
O dito é, pois, um sinal, sinal de iminência, de iminência do Juízo. E é um sinal cuja interpretação está ao alcance de todos, não somente dos cristãos. Todo homem, com sua razão natural – se sua razão natural não foi obscurecida até o ponto de não ver o que se está julgando –, pode vê-lo, e assumir sua culpa: de que, quando a Injustiça chegou ao ponto em que se tornou irreparável na terra, pede uma intervenção ‘do Alto’.
Contudo, ainda cabe acrescentar algo. A essa incapacidade da justiça humana de corrigir-se a si mesma deve-se acrescentar uma circunstância do mundo que nos toca viver. É a que chamaria ‘a enervação’ da natureza, e com isso quero dizer a perda de ‘nervo’ da mesma, isto é, de sua capacidade de reação. E isso é um sinal pelo seguinte: deve-se saber que, se Deus não intervém sempre por si mesmo para castigar as iniqüidades humanas, é porque normalmente deixa essa tarefa nas mãos da Natureza, por Ele criada. As grandes catástrofes, naturais e sociais, que marcam a história do homem pecador são, vistas com os olhos da Fé, castigos pelo Pecado.
Não são castigos diretos de Deus, emanados do Tribunal Transcendente.
Não precisam ser, porque Deus criou a Natureza com uma Ordem, e quando essa ordem é violada pelo Pecado, a própria natureza reage a essa perturbação com uma reação que é ao mesmo tempo ‘reintegradora da ordem’, e violenta e dolorosa.
Tem, assim, um sentido penal. Mas essa reação saneadora e punitiva da Natureza às transgressões a sua ordem parece estar sendo ‘quebrada’. Quebrada em seu nervo reativo por obra de uma tecnologia de inspiração diabólica. Com efeito, trata-se de uma tecnologia que não só faz alarde de violar a natureza, como se presume capaz de amenizar suas catastróficas reações: às quais chama ‘efeitos não desejados’. E cegou, também, a visão da inteligência, para que o homem não veja seus efeitos, e os interprete como o que são: efeitos punitivos.
Que aconteceu com a AIDS, castigo patente do pecado contra a natureza? Provocou remorso, ‘golpes no peito’ e revisão? Longe disso, só produziu um recrudescimento inaudito do vício abominável: ‘... blasfemaram do Deus do céu por suas dores e por suas chagas, e não se arrependeram de suas obras’.
E este é, portanto, um sinal a mais, ou uma acentuação de seu significado: a Suma Iniqüidade já não tem sanção na história, nem por obra do homem, nem por obra da Natureza, administradora do castigo divino. Uma vez mais: o Juízo Transcendente se aproximou e já ‘toca’ este final de história.”
(Federico Mihura Seeber, De Prophetia y Otros Temas de Actualidad)