domingo, 23 de fevereiro de 2014

Stanley Jaki e a relação dos cientistas com a filosofia (II)

“A Ciência moderna tem, nos termos da Teoria Geral da Relatividade de Einstein, um método que está livre de contradições com a gravitação interativa de tudo que é material. Daí se segue que, desde o ponto de vista da ciência, a idéia de universo é uma idéia legítima. Por que essa conclusão é tão importante? Porque Immanuel Kant, em seu ataque ao argumento cosmológico, declarou que este não apresenta razões concludentes, porque a idéia de universo é uma idéia falsa. De fato, Kant escreveu que o conceito de universo é o fruto ilegítimo dos desejos metafísicos do intelecto. Os cientistas modernos que se dedicam ao estudo da cosmologia devem, contudo, basear seus estudos na Teoria Geral da Relatividade de Einstein e, portanto, admitir que o universo é um conceito legítimo segundo a perspectiva científica. Dessa forma, a Cosmologia moderna arruína a objeção de Kant ao argumento cosmológico. E mais, a ciência moderna apresenta o universo como algo extremamente específico, tanto no espaço como no tempo. Conseqüentemente, e ao contrário do que afirmou Kant, a ciência não propõe dificuldades na hora de formular uma pergunta tão própria da Metafísica como é “Por que o universo é assim e não de outra maneira?” Qualquer pessoa minimamente informada da história do pensamento ao longo dos séculos passados poderá perceber sem problemas que essa contribuição da ciência ao argumento cosmológico é de suma importância.
- O senhor não crê que, embora talvez de modo inconsciente, as idéias filosóficas de cada cientista em particular influem em seu trabalho?
- Em todas as épocas, seja no século XIX, no XVIII ou no XIII, a maioria dos cientistas compartilhava os pontos de vista de grande parte dos outros grupos profissionais. Também é verdade que, na maior parte dos casos, as hipóteses empregadas nos trabalhos não são um reflexo da atividade científica. E quando são, costuma ocorrer que se empregam formulações muito primitivas das questões filosóficas. Portanto, é muito difícil tentar aprender filosofia através das obras dos prêmios Nobel. É quase tão perigoso como ir a um açougue em busca de luzes para compreender melhor a obra de Goya, pelo simples fato de que em muitos açougues se vê carne ensangüentada.
Hoje em dia, há poucas coisas mais perigosas ou nocivas que ler obras escritas por pessoas que foram galardoadas com o Prêmio Nobel de Biologia, Química, ou Física, e que tentam tornar acessível a Ciência. São ainda mais nocivas quando lidas com a idéia de aprender ética por meio delas. Fixemo-nos – por exemplo – em Acaso e Necessidade, de Jacques Monod. No livro, Monod nunca definiu o conceito de acaso. Se o título do livro já manca, desde o ponto de vista filosófico, por que lê-lo? O mesmo ocorre com os livros de Ilya Prigogine sobre a Filosofia da Ciência. O autor afirma que, como a Ciência não pode predizer os estados ulteriores de processos similares ao do fluxo turbulento, estes não são produto de nenhuma causa. Esse é um argumento filosófico muito pobre.
- O livro de Stephen Hawking teve muito sucesso em todo o mundo. A que se deve?
- Provavelmente a que o ambiente cultural contemporâneo se caracteriza por seu agnosticismo e por seu ateísmo. Em tais ambientes, busca-se na Ciência a confirmação de que Deus não existe. Porque se não há um Deus, pode-se fazer o que se quiser. Para um agnóstico ou um materialista, isso é algo muito reconfortante. Chegados a este ponto, só existem sistemas, modelos ou formas alternativas de vida que são usados segundo convenha.
- Qual sua opinião sobre o fato de que muitos cientistas aceitam a interpretação de Copenhague do mecanismo do quantum?
- Tal interpretação é uma falácia. Baseia-se na premissa de que uma ação intermediária que não se pode medir com exatidão não se pode produzir com exatidão. É uma falácia porque na primeira parte da premissa a palavra exatidão se emprega em seu sentido operativo, e na segunda parte em sentido ontológico. Isso é errado, porque entre ambos os campos não pode haver relação.
Muito antes que Heisenberg formulasse o Princípio da Incerteza e de que lhe desse aquele valor anticausal em 1927, muitos físicos famosos, entre eles o próprio Heisenberg, já haviam rejeitado o Princípio da Causalidade em outros campos. O que aconteceu foi que em lugar de encontrar na ciência uma demonstração ou refutação da causalidade, o que encontraram foi uma espécie de revestimento de cientificismo para sua incredulidade na causalidade. Tal revestimento e uma refutação científica são duas coisas bem diferentes. Buscou-se a aparência de ser algo científico porque a mentalidade da cultura moderna se baseia no pragmatismo e no relativismo. Tal mentalidade busca uma gratificação imediata, e trata de ignorar as conseqüências a longo prazo (fundadas na causalidade) das ações do indivíduo. Para poder sustentar esta mentalidade deve-se ter um ponto de vista mediante o qual as coisas pareçam ser incoerentes. A aparência de cientificismo que adota a rejeição da causalidade sustenta essa reivindicação pseudocultural da incoerência das coisas e das ações.
Em outras palavras, segundo essa perspectiva o fim da vida é passar por muitos momentos em que recebemos gratificações imediatas, sem necessidade de examinar a relação entre um momento e outro, ou suas conseqüências. Dito de outro modo: deve-se ter em conta que a mentalidade moderna está doente como conseqüência do pecado original e que isso será assim sempre. Usemos os argumentos que usarmos, o mundo continua sendo o que era, o que é e o que continuará sendo, em relação a sua atitude negativa diante dos argumentos filosóficos puros e da religiosidade sincera.
- Que diferença existe entre a mente humana e o computador mais perfeito?
- Se se considera que a mente humana equivale ao cérebro, que é um conjunto de moléculas, pode-se estabelecer um paralelismo entre o cérebro e um computador. Mas quem demonstrou que a mente humana se reduz ao cérebro? Se tudo é assunto próprio da mente humana, então, como pode a mente chegar à idéia do nada? Ou como pode a mente conceber funções matemáticas que não podem ser expressas em termos quantitativos exatos, tais como, por exemplo, a tendência ao infinito no cálculo integral ou o reino dos números irracionais ou imaginários? Se a mente é simplesmente um conjunto de moléculas, como se explica que chegue a tais idéias, e muito especialmente à idéia do nada? O nada é uma das invenções mais espetaculares do poder metafísico da mente humana. Quando se escreve, se transforma em algo, mas apesar de tudo significa que não há nada.
Se a mente humana se reduz ao cérebro, resulta impossível lidar com coisas tão essenciais na vida da mente como são as abstrações (implícitas em toda palavra) e os fatos na vida espiritual.
- E que tem a dizer a Ciência sobre a evolução biológica?
- A Ciência pode esclarecer que houve um passado biológico de pelo menos 3 bilhões de anos. Pode estabelecer que há certa sucessão entre várias espécies e gêneros. Mas quando a Ciência emprega termos como espécies, gêneros e filos, traz à colação os poderes metafísicos da mente. Não se podem ver os diferentes reinos animais nem as espécies. Todas essas idéias, tão essenciais na biologia evolutiva, são generalizações. A biologia evolutiva está repleta de conceitos metafísicos. E mais, a ciência biológica não pode dizer nada sobre o propósito da evolução. Para começar, a Ciência não demonstrou empiricamente a origem de uma espécie a partir de outra. Quando aceito a evolução, e desde que a aceito partindo dos poderes metafísicos de minha mente, considero que isso é um reflexo maravilhoso desses poderes metafísicos. Mas de forma alguma um método científico me pode dizer o propósito da evolução e, sem sombra de dúvida, não me serve para nada uma evolução baseada na probabilidade, porque probabilidade é outro modo de dizer ignorância. Há muito que já se devia ter eliminado essa palavra da terminologia filosófica e científica.
- Por que os teoremas de Gödel sobre o incompleto são tão importantes?
- Considerados em si mesmos, tais teoremas afirmam apenas que as matemáticas não podem ser consideradas como um conjunto de proposições verdadeiras a priori e, portanto, necessárias. Isso, contudo, admite uma conseqüência muito importante para a cosmologia científica, que em parte é empírica e em parte, teórica. Do ponto de vista teórico, a cosmologia científica tem muito de matemática. Conseqüentemente, nenhuma expressão de cosmologia científica pode ser considerada como necessariamente certa, baseando-nos em sua simplicidade matemática. Apesar disso, alguns cosmólogos modernos (Hawking, por exemplo) têm esperança de dar com alguma teoria cosmológica que demonstre que o universo tem que ser necessariamente como é e o que é. Um universo que existe necessariamente não precisa de um criador. A importância dos teoremas de Gödel deve estar clara agora. Devido a isso é impossível sustentar o mais importante princípio do paganismo clássico e moderno, a saber, que o universo é o ser primário.
No entanto, se o universo, que é a totalidade das coisas, não pode ser considerado como o primário ou essencial, fica aberto o campo à busca filosófica e teológica desse Princípio que é o Criador do universo. Ou existimos necessariamente ou somos criados. A terceira alternativa, que tudo existe por acaso, não merece nem sequer ser considerada. O acaso é um sinônimo de nossa ignorância. Isso foi ensinado por muitos sábios, inclusive o Cardeal Newman (ano passado celebramos o centenário de sua morte). Newman estava muito perto do ponto principal de nossa conversa quando escreveu: “Há só um pensamento maior que o de nosso universo, e esse pensamento é o de seu Criador”.”
(Stanley Jaki, Los Científicos y la Filosofia, entrevista a Molly Baldwin e Patricia Pintado Mascareño)