quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Stanley Jaki e a relação dos cientistas com a filosofia (I)

“Stanley Jaki nasceu em Györ (Hungria) em 1924 e é Professor Emérito da Universidade Seton Hall de New Jersey. Ingressou na Ordem Beneditina em 1942. Doutor em Teologia e Física, durante os últimos trinta e cinco anos realizou numerosos estudos especializados em história e filosofia da ciência. É Doutor Honoris Causa por seis universidades.
Em 1970 foi-lhe outorgado o Prêmio Lecomte de Nouy. Em 1987 recebeu o Prêmio Templeton por suas publicações. Desde 1989 é Fellow do Centro de Investigação Teológica de Princeton. Foi nomeado recentemente Membro da Academia Pontifícia de Ciências. Publicou 22 livros, entre os quais se destacam The Relevance of Physics (1966) e The Road of Science and the Ways to God (1978). Em castelhano se publicou Ciência, Fé e Cultura (MC, 1990, ver Atlantida, 1990, pág. 484).
O estilo do professor Jaki é muito pessoal e pleno de um fino senso de humor: seu ensinamento é ilustrado com abundantes exemplos. Joga com variados recursos do idioma, em uma exposição plena de metáforas e delicados matizes. Sua obra resulta desmistificadora. Quem deseja discutir suas conclusões encontra abundantes ocasiões para fazê-lo, mas deve empregar um instrumento que Jaki domina com desenvoltura: os fatos, a realidade histórica.
- Sr. Jaki, o senhor disse que nas mesas de todas as salas de aula e laboratórios deveriam ser gravadas as palavras de Maxwell: “Uma das provas mais difíceis para uma mente científica é conhecer os limites do método científico”. Quais são os limites do método científico?
- Os limites da Ciência (e ao falar de Ciência me refiro a sua forma mais exata, ou seja, à Física) são fixados por seu próprio método. O método da Física versa sobre os aspectos quantitativos das coisas em movimento. Só podemos aplicar legitimamente o método da Física quando captamos traços quantitativos nas coisas. Mas quando diante das coisas nos surgem perguntas como “E isso é bonito?”, “Isso existe?” ou “Isso é moralmente bom?”, nos perguntamos coisas que o método da Física não pode responder. Atualmente é muito importante – em momentos em que muitos desejam respostas científicas a suas perguntas – que esta limitação do método científico seja manifestada com freqüência e firmeza por físicos insignes. Os físicos têm uma grande autoridade epistemológica. Se um Prêmio Nobel de Física diz algo, mesmo que não esteja relacionado com seu campo específico de estudo, em pouco tempo suas declarações são publicadas na imprensa. Pode falar de tudo que existe debaixo do sol, pode até dizer besteiras, mas diga o que disser, as pessoas duvidam de si mesmas antes de duvidarem de um Nobel de Física. Alguns físicos abusaram muito da confiança que as pessoas depositam neles. De certo modo, dado que este abuso se tornou algo bastante habitual, descobrimos uma pista que nos conduz aos maiores males da cultura moderna ocidental: um interesse quase exclusivo nas quantidades. Quando se trata de analisar uma questão moral tornou-se moda recorrer às estatísticas: Quantas pessoas agem deste modo e quantas de outra maneira? Depois, se é que se chega a alguma conclusão, afirma-se que é preferível a atuação da maioria à da minoria.
Em outras palavras, o perigo que existe – em potência – no método científico é que sob sua influência podemos enquadrar a sensibilidade em certos padrões previamente fixados. Como um padrão ou modelo pode ser medido, podemos cair na tentação de pensar que, uma vez obtidos certos resultados quantitativos, já achamos a solução à nossa pergunta. Agindo desse modo talvez eliminemos os aspectos mais importantes da pergunta, especialmente se é de estética, moral ou sobre a existência como tal. Por exemplo, um cientista olha através de seu microscópio. Ao longo desse processo aplica legitimamente o método científico. Mas esse método não pode sequer assegurar-lhe que o microscópio esteja diante dele. Ponho ênfase no verbo ser ou estar, o mais metafísico de todos os verbos. Com esse verbo o método da ciência não tem nada a ver.
[Distinção entre quantitativo e qualitativo]
- Que pensa o senhor sobre a necessidade de unir nos planos de estudo das universidades os estudos humanistas e os científicos?

- Opino que os estudos humanistas e os científicos devem estar separados. Não se deve tentar fundi-los porque partem de pressupostos diferentes e empregam métodos também diferentes. Em Humanidades, por exemplo, quando estudamos Dante, não perguntamos: Quantas letras há em tal ou qual obra de Dante? Pergunta que no campo científico seria lógica. Ao estudar obras literárias nos move um propósito muito específico; para tal estudo o método científico serve muito pouco. As grandes obras literárias oferecem, em geral, lições de moral, de ética. Versam sobre os desígnios humanos, o destino, as reações dos diferentes indivíduos diante de questões de consciência. Nenhuma dessas perguntas pode ser solucionada empregando um método científico. Devemos cultivar tanto os aspectos quantitativos das coisas como os que não são mensuráveis: os aspectos qualitativos dessas mesmas coisas, desses processos e experiências. Como as Humanidades partem de um método que não é científico e os aspectos quantitativos das coisas exigem outro método, ambos devem ser tratados de formas diferentes. O problema de nossa cultura é que estamos condicionados por 200 ou 300 anos de ciência e, portanto, é muito difícil tratar somente de questões de tipo quantitativo, ainda que tenhamos em mente o valor tão importante que se dá em nosso século à ciência.
[Não unir o que Deus separou]
Gostaria de repetir algo que já ressaltei muitas vezes, a saber, que nenhum homem deve unir o que Deus separou. De que maneira ou em que sentido Deus separou essas coisas? O sentido é que existe uma irredutibilidade conceitual entre os aspectos quantitativos e qualitativos das coisas. À guisa de exemplo poderíamos considerar a ação de assassinar. Tal ação – pega-se uma faca e se a enfia nas costas de alguém – pode ser descrita corretamente em termos quantitativos. Pode-se medir o tamanho da faca, a profundidade da ferida ou o momento exato em que expirou a vítima. Apesar disso, esses dados não nos levariam a descobrir se a pessoa morta era inocente, ou se a ação foi lícita ou ilícita moralmente, ou mesmo se a pessoa que cometeu o crime sentiu ou não remorso. Os aspectos físicos ou morais de uma mesma ação não podem se equiparar conceitualmente. A isso me refiro ao afirmar que “ninguém deve unir o que Deus separou”. Esses aspectos não estão separados no sentido de que não têm nada a ver um com o outro. Mas ao tentarmos compreender esses aspectos – diferentes –, devemos ter em conta que temos em nossas mãos conceitos totalmente diferentes. Nesse sentido as Humanidades não podem se tornar Ciências, nem estas poderão ser jamais um ramo dos estudos humanistas.
- O senhor afirmou que o grande “crime” deste século é dizer que o único conhecimento verdadeiro é aquele que se pode medir quantitativamente. Quais são as conseqüências mais importantes desse “crime”?
- É um crime no sentido de que essas aplicações unilaterais do método quantitativo chegam a privar o ser humano de sua sensibilidade aos aspectos incomensuráveis da existência. A principal conseqüência é a relativização dos pontos de vista morais. Em lugar de nos movermos em uma perspectiva moral, segundo a qual uma ação é intrinsecamente boa e outra é intrinsecamente má, agora seguimos um modelo behaviorista. Essa é a base do relativismo moderno que se fundamenta na crença de que existem vários padrões de comportamento, ou, como diz a frase popular americana, “estilos de vida alternativos”. Não se fazem mais perguntas.
- Como o senhor descreveria a atitude da Igreja diante da Ciência ao longo da história?
- A atitude da Igreja diante da Ciência foi muito benéfica. Considerada em si mesma, tal atitude não tem que ser útil à Igreja como tal, dado que o campo da Igreja não é o mundo da Ciência. Como se dizia nos tempos de Galileu, e como de fato o próprio Galileu afirmou citando Santo Agostinho: “a razão de ser da Igreja não é explicar às pessoas como funciona o Céu, mas como chegar ao Céu”.
- Que se deve fazer se as conclusões a que chega a Ciência são contrárias aos ensinamentos da Igreja?
- Toda conclusão científica é sempre quantitativa. Como tal, não tem conteúdo moral. Não tem sequer conteúdo ontológico. Pressupõe um estado ontológico. Quando um cientista avança além da aplicação apropriada do método científico, deve-se-lhe chamar a atenção e advertir que ultrapassou os limites de sua competência. Em outras palavras, quando nos encontramos diante de conclusões científicas e ensinamentos da Igreja que estão se confrontando, o pior que se pode fazer é perder a calma. Deve-se especificar a natureza das próprias objeções, sejam quantitativas ou não. No primeiro caso, não pode ir contra os ensinamentos da Igreja. No outro caso, não é uma objeção científica, mas filosófica, ética ou pseudofilosófica, e como tal deve ser tratada.
Temos o caso do aborto. A Medicina moderna chegou tão longe que é possível realizar um aborto sem prejudicar a mãe, quando o feto tem poucas semanas. Isso é algo medicamente comprovado. Contudo, só porque se chegou a esse ponto não significa que o aborto seja moralmente lícito. E agora analisemos um caso de furto. Há ladrões mui hábeis que agem com tal maestria que ninguém se dá conta do ocorrido. Nesses casos, o ato deixa de ser considerado um roubo, pelo simples fato de ter sido realizado com uma astúcia exemplar?
Sempre se deve lançar mão de duas distinções fundamentais: Se se fala simplesmente de quantidades ou se nos referimos a uma série de coisas não mensuráveis e com conteúdo moral.
[A existência de Deus é cientificamente demonstrável?]
- O senhor afirma que as premissas filosóficas das que se parte no uso criativo do método científico são semelhantes às premissas filosóficas mediante as quais se pode demonstrar a existência de Deus. É, portanto, correta a afirmação de que essas premissas são próprias de ontologias realistas, e que portanto a Ciência demonstra a existência de Deus?
- O método científico não demonstra a existência das coisas, muito menos a de Deus. Voltemos à base de tudo. Como disse antes, assim que o cientista afirma “há um microscópio diante de mim”, está falando como um filósofo, tenha ou não conhecimento de filosofia. A essência de toda prova da existência de Deus está ligada à existência do universo ou do cosmos. Se existe um universo, e o há, então a razão de sua existência só pode ser encontrada em um fator externo ao universo. Esse fator é Deus. (Gostaria de precisar que tomamos universo no sentido estrito da palavra, que o universo é a soma de tudo. Não pode haver dois universos. A pluralidade de universos é uma contradição em si mesma.)”
(Stanley Jaki, Los Científicos y la Filosofia, entrevista a Molly Baldwin e Patricia Pintado Mascareño)