quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Juízo sobre a obra de Immanuel Kant

“Não nos sendo possível descer a particulares e examinar em todas as suas partes o criticismo transcendental, diremos apenas uma palavra de suas doutrinas fundamentais.
A. A empresa a que Kant mete ombros de instituir a análise do conhecimento e determinar os limites naturais das faculdades cognoscitivas é das mais importantes em toda a filosofia. Com uma profundidade de análise psicológica ainda não excedida já a tinham resolvido Aristóteles e os escolásticos. O objeto natural da ciência humana, o valor objetivo das idéias, a necessidade e universalidade dos conhecimentos intelectivos, a sua relação com a sensibilidade haviam sido objeto de largos e profundos estudos e recebido soluções luminosas, graças ao método eminentemente racional de estudar as faculdades pelos seus atos e estes pelos seus objetos. Ora, este mesmo problema, nos termos em que o formula Kant, já envolve contradição. O fundador do criticismo pretende investigar as condições a priori do conhecimento, isto é, conhecer o que precede todo conhecimento, estudar a razão em si com a mesma razão que ele declara não poder conhecer os objetos em si, fazer das formas a priori um objeto de conhecimento, depois de afirmar impossível o conhecimento sem experiência. Doutrina Kant que na realidade não há nem unidade, nem multiplicidade, nem diversidade, nem causalidade, porque todas estas noções provêm de formas subjetivas do nosso espírito, e no entanto, admite a existência, a realidade, a diversidade e a influência recíproca de suas três faculdades – e isto como estudo preliminar a todo o conhecimento. É a primeira das muitas contradições em que freqüentemente o enreda a posição insustentável de um criticismo absurdo.
B. Seu ponto de partida – a existência dos juízos sintéticos a priori – é um falso suposto. Tais juízos não existem. De fato, em todo o juízo, o predicado ou está necessariamente conexo com o sujeito, quer como parte de sua essência, quer como propriedade por ela exigida, ou não. No primeiro caso, o juízo é analítico, no segundo, sintético, experimental. Que na experiência contingente e variável não se possa fundar uma afirmação universal e necessária é outra asserção gratuita em cujo apoio Kant não se digna trazer uma só prova. Os escolásticos já tinham explicado o fato com teoria da abstração tão natural e tão de acordo com o testemunho da consciência. Kant ignora ou finge ignorar toda esta teoria cuja crítica nem sequer tentou. Ora, negada a existência dos juízos sintéticos a priori, rui por terra todo o seu sistema.
C. O πρώτον ψεύδος, porém, de toda crítica é a inversão total do conceito de conhecimento. Atesta-nos, irrefragável, a experiência interna que o conhecimento é um ato vital, imanente, pelo qual representamos os objetos como são em si. Se a representação é conforme à realidade, o conhecimento é verdadeiro; no caso contrário, é falso. Para o filósofo de Königsberg, o conhecimento não é percepção, é a construção do objeto. Não é o espírito que se adapta às leis dos seres, e sim os seres que se amoldam às leis do espírito. Ora, uma vez negada a proporção entre o ato cognoscitivo e o seu objeto, desaparece a distinção entre a verdade e o erro, torna-se o homem a medida de todas as coisas (Protágoras), qualquer discussão filosófica ou científica é inútil e inútil antes de tudo toda a crítica kantiana.
D. Deste erro fundamental nasce o falso conceito da ciência cuja realidade Kant, de fato, nega. A ciência não é mais, para ele, o conhecimento da natureza, é uma construção subjetiva, dependente da estrutura do nosso espírito. Mas, então, como explicar o acordo maravilhoso entre os fatos e as deduções da inteligência? Por que leis secretas há de surgir, por exemplo, a sensação de um eclipse no tempo e no espaço previstos pela razão? Como explicar ainda o desacordo entre o espírito e os mesmos fatos que, não raro, se revoltam contra as nossas previsões, corrigindo-lhes o erro? Como explicar, por fim, a necessidade da experimentação com todas as suas surpresas? Para estas perguntas Kant não tem resposta satisfatória.
E. O criticismo não explica a possibilidade da ciência. Menos ainda demonstra a impossibilidade da metafísica. Se o princípio de causalidade é subjetivo não pode haver ciência real: vere scire, per causas scire. Se é objetivo conduz-nos infalivelmente à existência de causas supra-sensíveis, Deus e alma. As antinomias em que nos implicaria a afirmação da existência real destas idéias só existem no espírito de Kant. Os argumentos por ele alegados para provar com igual força as antíteses de suas teses são velhos sofismas que uma lógica mais vigorosa já havia resolvido.
F. Por fim a incognoscibilidade do noumenon com que ele pretende descartar-se da metafísica é outra teoria que leva a contradição ao âmago do sistema. Se, de fato, ele se serve do princípio de causalidade para provar a existência de noumenons (aqui já vai a implicância: o conceito de causa fora declarado subjetivo), por que não nos há de levar o mesmo princípio a afirmar a distinção específica entre os mesmos noumenons? Mais: sem admitir certa heterogeneidade na matéria submetida aos aparelhos sensórios, como justificar a aplicação, ora de uma, ora de outra das tantas formas subjetivas de que ele com tanta prodigalidade dotou o nosso espírito?
Contraditória, portanto, em todas as suas teorias fundamentais é a crítica da razão pura.
G. A crítica da razão prática, se honra a consciência do homem, não depõe menos em desabono do pensador. O esforço ingente, que ela traduz, de querer salvar a moral e as verdades que lhe são pressupostas é, sem dúvida, digno de todo o encômio e atesta a natural honestidade de seu autor. Mas a lógica, implacável no rigor de suas conseqüências, eleva-se de permeio e opõe uma à outra, em antagonismo irredutível, as duas críticas. De modo algum podem elas conciliar-se ou fundir-se num todo racionalmente harmônico e coerente. Uma irremediavelmente há de destruir a outra.
De feito. A razão teórica e a razão prática são apenas dois modos diferentes de agir de uma mesma faculdade. Conhecer verdades de ordem teórica ou conhecer verdades de ordem prática é sempre conhecer verdades. Um só, pois, é o objeto formal e as duas razões não são duas faculdades distintas, mas duas formas de atividade de um mesmo princípio intelectivo, sujeitas às mesmas leis, dotadas da mesma potencialidade. Por que motivo, pois a priori se há de outorgar à razão prática o privilégio de atingir a realidade, negado à razão teorética? Apresentam-se, porventura, os princípios de ordem moral com mais evidência que os de ordem especulativa? E, se o nosso espírito erra quando afirma que na realidade dois e dois são quatro, quem nos assegura que se não ilude também quando prescreve a lei do dever?
Mais. O imperativo categórico, afirma Kant, exige como postulados a existência de Deus e a substancialidade livre e imortal da alma. Mas como o prova? Com os mesmos princípios da razão especulativa que ele antes declarara subjetivos. Que maior valor, portanto, apresentam as provas morais sobre as especulativas? Deus existe, diz o filósofo alemão, porque sem Deus a virtude humana não poderia ser definitivamente feliz. Mas, se o homem pode existir sem Deus, por que não pode ser feliz sem ele? Se no movimento, na contingência do universo, na atividade dos seres, na gradação das perfeições finitas, na ordem de todo o criado, não encontrou Kant a necessidade de um primeiro Motor, de um Ser necessário, de uma Causa suprema, de uma Perfeição subsistente, de uma Inteligência ordenadora, com que direito a deduz agora da simples possibilidade de sermos felizes?
H. Conclusão. Muito frágil é a parte construtiva do criticismo. Resta apenas a parte destrutiva pela qual Kant, mais talvez que nenhum outro, contribuiu para fomentar o ateísmo, o racionalismo e a incredulidade do século passado.
A sua grande construção filosófica é contraditória no seu plano, falsa nos seus fundamentos, absurda e incoerente nas suas conclusões. “A teoria de Kant é uma grande alucinação dum gênio, contendo em germe o ceticismo absoluto, o idealismo, o niilismo e o panteísmo.””
(Pe. Leonel Franca, S.J, Noções de História da Filosofia)