domingo, 14 de outubro de 2012

Cálicles, um precursor grego de Nietzsche

“Cálicles – [...] Mas a natureza e a lei o mais das vezes opõem-se mutuamente. Por isso, quando alguém, por vergonha, não ousa dizer o que pensa, é obrigado a se contradizer. E tu, bem conhecendo esse ardil, o utilizas de modo fraudulento nos raciocínios, deslocando tua pergunta para o plano da natureza, quando se fala segundo a lei, e, vice-versa, deslocando-te para o plano da lei, quando o outro se move no da natureza. [...] De acordo com a natureza, com efeito, é mais vergonhosa a pior alternativa, que é o caso de sofrer a injustiça; segundo a lei, ao contrário, isso se aplica ao ato de cometê-la. De fato, isso, ou seja, sofrer injustiça, não é algo digno do homem, mas de um escravo qualquer, para quem é melhor ser morto que viver, uma vez que, quando é vítima de injustiça e é ofendido, não é capaz de socorrer a si mesmo, nem a outrem por quem seja responsável. Creio que as leis tenham sido criadas pelos homens fracos, a maioria.
Portanto, em seu próprio favor, os fracos estabelecem as leis, cantam louvores e formulam censuras. E, para assustar os mais fortes e capazes de prevalecer sobre eles, para não serem sobrepujados, declaram vergonhoso e injusto sobrepor-se aos outros e dizem que nisto consiste cometer injustiça: procurar ter mais do que os outros. E eu acredito que, por serem mais fracos, eles dão tanto valor à obtenção da igualdade.
Por essa razão, procurar ter mais do que os outros é considerado injusto e vergonhoso por lei, e eles chamam a isso praticar injustiça. Mas me parece que a própria natureza demonstra isso, ou seja, que é justo que o melhor tenha mais que o pior, e o mais poderoso tenha mais que o menos poderoso.
E nos demonstra que é assim em muitos casos e, no que diz respeito aos homens, em todas as cidades e nas famílias, e nos outros animais; ou seja, demonstra que o justo se julga deste modo: que o mais forte domine o mais fraco e tenha mais do que ele. [...] Para dominar os melhores e os mais fortes do que nós, prendendo-os desde jovens como se faz com os leões, acorrentando-os e seduzindo-os, nós os submetemos, dizendo-lhes que é preciso ser iguais e que isso é belo e justo.
Tenho certeza, porém, de que, se nascesse um homem dotado de uma natureza adequada, então ele se livraria de todas essas coisas, as quebraria e rejeitaria, desprezaria nossos escritos, encantamentos, sortilégios e nossas leis, que são todas contrárias à natureza, e, assim se rebelando, nosso escravo passaria a ser nosso senhor, e então brilharia o justo segundo a natureza.”
(Platão, Górgias, citado na obra de Giovanni Reale, Saggezza Antica)

Tradução de Silvana Cobucci Leite