“Em 1999 comemora-se [esta entrevista foi publicada naquele ano] o bicentenário de um acontecimento pouco comentado, cujo momento culminante deu-se em 1799. Trata-se da grande contra-revolução empreendida pelo povo italiano contra a imposição forçada dos princípios da Revolução Francesa por parte dos exércitos napoleônicos, que contavam com o apoio das quintas-colunas jacobinas da península. Apesar de as reações dos italianos – comumente chamadas insurreições – contra as reformas jansenistas e iluministas já houvessem começado em 1787, foi somente a partir da invasão de Napoleão na Itália (em 1796), que a resistência se generalizou por todo o território, em nítida defesa do altar e do trono. Ou seja, da Religião católica e dos legítimos governos existentes nos diversos reinos italianos, numa palavra, da milenária civilização católica.
As insurreições prolongaram-se por todo o período da dominação do Corso – como era chamado Napoleão Bonaparte - até o fuzilamento do seu lugar-tenente, Joaquim Murat, na Calábria, em 1815.
Esta página heróica da História foi escrita por centenas de milhares de italianos, abrangendo todo o território, desde os Alpes até a Puglia e a Calábria. Cerca de 200.000 deles pereceram bradando “Viva o Papa”, “Viva o Rei”, “Viva o Imperador”. Entretanto, o brado que mais ressoou nos lábios dos insurgentes foi “Viva Maria”, registrado depois pelos historiadores filo-revolucionários em sentido depreciativo. Com a expressão “Viva Maria” são freqüentemente denominados os insurgentes italianos. Outra denominação célebre com que eles são conhecidos é a de “sanfedistas”, em virtude do nome do exército que o Cardeal Ruffo levantou em Nápoles contra os franceses de Napoleão: Exército da Santa Fé.
Foi uma verdadeira epopéia, tão trágica quanto heróica, que durou 25 anos, e que exatamente há duzentos anos teve o seu ápice. Com efeito, no inicio de 1799, quase toda a península itálica encontrava-se sob o domínio napoleônico. No final desse ano, porém, nenhum soldado francês pisava as terras italianas. Poucas vezes, ou nunca na História, uma força contra-revolucionária obtivera um triunfo militar tão vasto como nesse ano. Foi só depois do golpe de Brumário (7-11-1799) que o Corso começou a reconquistar o terreno perdido na Itália.
Como o leitor bem pode notar, o primeiro elemento que chama a atenção é o silêncio que caiu sobre esses fatos históricos. Têm-se publicado estudos sobre a análoga resistência da Vandéia, na França, e sobre o levante antinapoleônico da Espanha. Mas na Itália – onde o assunto é hoje de muita atualidade – o muro de silêncio só agora está sendo derrubado, pelo esforço de alguns investigadores que têm dedicado anos ao estudo das fontes documentais. Muitos jornais e revistas vêm concedendo espaço em suas páginas a artigos e entrevistas sobre o assunto.
Para conhecer melhor o que aconteceu nesse período, nosso correspondente em Roma, Sr. Juan Miguel Montes, entrevistou o Prof. Massimo Viglione, um dois maiores experts na matéria e autor de dois livros recentíssimos sobre o assunto: Rivolte dimenticate. Le insorgenze degli italiani dalle origini al 1815 [Rebeliões esquecidas. A insurreição dos italianos desde as origens até 1815], Roma, Città Nuova, 1999 (340 pp.) e Le insorgenze. Rivoluzione & Controrivoluzione in Itália [As insurreições. Revolução e Contra-Revolução na Itália], 1792-1815, Milano, Edizioni Ares, 1999 (240 pp.).
Catolicismo – Que causas levaram os italianos à contra-ofensiva geral contra as forças napoleônicas?
Prof. Massimo Viglione – As causas são de dois tipos. As imediatas – os franceses, sob as ordens de Napoleão, saqueavam tudo: as casas dos pobres, as igrejas, os hospitais, os “Montes de Piedade” (institutos de poupança e crédito fundados pela Igreja para benefício das classes mais necessitadas). Onde chegavam, impunham impostos de guerra sem limites, profanavam os conventos, cometiam sacrilégios contra o Santíssimo Sacramento, dispersavam as relíquias dos Santos, impunham leis ferozmente laicistas, e até uma que obrigava os Bispos a fazer o serviço militar... Além disso, levaram embora boa parte dos tesouros de arte da península italiana, inclusive a própria Imagem de Nossa Senhora de Loreto e os célebres cavalos de bronze da Basílica de São Marcos de Veneza. O maior furto da História, feito em nome da fraternidade!
Além da indignação justíssima que todos esses abusos produziam, a causa mais profunda das insurreições foi ideológica. Os italianos tinham tolerado pacificamente, ao longo dos séculos, invasões de todos os tipos, inclusive a dos muçulmanos, como também as efetuadas por outros franceses, na época de Carlos VIII e dos Anjou. Os soldados e funcionários de Napoleão, porém, não eram aos olhos dos italianos os franceses de outrora: eram “revolucionários” que vinham modificar pela força a essência da sociedade italiana, formada ao longo do tempo; vinham para aniquilar 1400 anos de civilização cristã, para substituí-la por uma sociedade laicista e igualitária. Foi isto que chocou profundamente os peninsulares desse tempo, habituados à serenidade e à ordem da Itália, toda ela baseada no binômio Altar e Trono, levando-os à reação armada.
Catolicismo – Essas reações foram espontâneas, ou organizadas pelos nobres e pelo Clero? Quem delas participou?
Prof. M. Viglione – Na maior parte dos casos, as reações eram de caráter popular e espontâneo, principalmente devido ao fato de que, ainda quando os nobres e o Clero tinham uma posição contrária à Revolução Francesa (o que não acontecia sempre, sobretudo entre o Clero do sul, mais aberto à influência jansenista), eles tendiam a uma atitude prudente. Somente depois do levante da população, os nobres, e às vezes até os sacerdotes, passavam a comandar o movimento. Mas todas as classes sociais participavam das insurreições, sem nenhuma exclusão. Sobretudo o povo miúdo, um pouco menos a burguesia, embora também ela tenha aderido no fim. Em todo caso, tratou-se essencialmente de um “fenômeno de massa”, para usar um termo caro aos marxistas. O caso mais clamoroso nesse sentido foi o do Cardeal Ruffo, em sua empresa de reconquista do Reino de Nápoles: tendo desembarcado no dia 7 de fevereiro na Calábria à testa de sete homens, já no mês de abril vemo-lo chefiando milhares de voluntários. E no dia 13 de junho entra vitorioso em Nápoles, com um exército imenso, para derribar a República jacobina e restaurar os Bourbons. A cidade de Arezzo organiza em poucos dias um exército de 38.000 voluntários e reconquista o Grão Ducado da Toscana.
Catolicismo – Em seus livros, o Sr. ressalta as ferozes matanças de insurgentes praticadas pelos revolucionários. Poder-se-ia falar numa “Vandéia italiana”?
Prof. M. Viglione – Pode-se, sem dúvida, falar em “Vandéia italiana”, sobretudo considerando o tema sob um prisma ideológico. A insurreição italiana não pode, infelizmente, invejar nada à Vandéia do ponto de vista do genocídio. Eu dou alguns exemplos que me vêm à memória: em Mondovì, foram massacrados a fio de espada 1500 mulheres e crianças em apenas uma hora de repressão, outras 1500 pessoas em Isernia, 2200 em Amantea, 9000 em San Severo, 4000 em Andria, sem contar os 10.000 mortos em Nápoles, no levante dos Lazzari, durante o qual os napolitanos foram queimados vivos nas suas próprias casas. No dia 22 de agosto de 1806, na igreja de São Lourenço, em Reggio Calábria, dezenas de mulheres, velhos e crianças, que tinham procurado refúgio nesse lugar sagrado, foram queimados “até o último”. Ninguém lhes propôs sequer a rendição ou sair, como reconheceu em seu relatório um oficial de José Bonaparte. Na Abadia de Casamari, ainda no ano 1799, depois de serem hospedados pelos monges, os soldados napoleônicos entraram na igreja para pisar com os cavalos as hóstias consagradas. Quando os monges jogavam-se no chão tentando recuperá-las, os franceses golpeavam-nos com os sabres, primeiro cortando-lhes os dedos, e depois, assassinando-os. Um recente cálculo refere-se a pelo menos 200.000 italianos mortos em defesa da Civilização Cristã, embora quase ninguém o saiba.
Catolicismo – Como é possível que quase ninguém o saiba? Como foi possível ocultar tudo isto?
Prof. M. Viglione – A resposta é, no fundo, simples. Como imaginar que as forças pró-jacobinas e esquerdistas, que têm ocupado por décadas quase todos os espaços da cultura do país, possam aceitar ou, pior ainda para eles, divulgar, que centenas de milhares de italianos se alçaram contra os “imortais princípios” do liberalismo, do socialismo, do republicanismo da Revolução Francesa, em defesa da civilização e da tradição católicas? E tudo isso no país do Papado?
Poder-se-á objetar: mas as insurreições na Vandéia e na Espanha são mais conhecidas. Por que se conhece tão pouco o levante da Itália contra Napoleão?
A diferença da França ou da Espanha em relação à Itália reside no fato de que tivemos aqui o “Risorgimento”, ou seja, o movimento que promoveu a unidade italiana na segunda metade do século passado. O “Risorgimento” é apresentado ao italiano médio como a Revolução Francesa é apresentada ao francês médio: o bem por excelência. Ora, os artífices do “Risorgimento” tinham como precursores doutrinários os jacobinos da Revolução Francesa. Por isso, tornava-se necessário cancelar da memória, especialmente por parte da historiografia oficial, a idéia de que os princípios da Revolução Francesa trazidos aqui por Napoleão tinham sido energicamente rejeitados pela maioria dos italianos, para desta maneira evitar uma análoga reação contra o próprio “Risorgimento”. Movimento este que, por sua vez – como o reconheceu o maior ideólogo comunista italiano, Gramsci – foi um fenômeno de pequenas elites e não de maiorias. A insurreição italiana contra Napoleão foi, pelo contrário, um fenômeno absolutamente maciço e popular.”
(Revista Catolicismo, julho de 1999)