quinta-feira, 21 de junho de 2012

Non confundar in aeternum

“Deus é Ser infinito, Verdade infinita, Bondade infinita, infinitamente justo e infinitamente misericordioso. Assim ensina a Igreja, e a idéia é grandiosa e bela, portanto não tenho nenhuma objeção. Mas aí eu descubro que a Igreja também ensina que por causa de somente um único pecado mortal a alma pode ser condenada por toda a eternidade a sofrimentos severos e cruéis além da imaginação, e isso não é muito atraente. Eu começo a objetar.
Por exemplo, eu nunca fui consultado antes que meus pais decidissem me trazer à existência, nem fui consultado a respeito dos termos do contrato, por assim dizer, de minha existência. Se tivesse sido consultado, eu bem poderia objetar a uma alternativa tão extrema entre a felicidade inimaginável e o tormento inimaginável como ensina a Igreja, ambos sem fim. Eu poderia aceitar um “contrato” mais moderado, pelo qual em troca de um Céu de curta duração eu enfrentaria somente o risco de um Inferno abreviado, mas não fui consultado. Uma infinidade de qualquer deles me parece fora de proporção com esta breve vida minha sobre a terra: 10, 20, 50 ou até mesmo 90 anos estão aqui hoje e acabam-se amanhã. Toda a carne é como a relva – “que viceja e floresce de manhã, mas que à tarde é cortada e seca” (Sal LXXXIX, 6). Por essa linha de pensamento Deus parece ser tão injusto que eu seriamente chego a duvidar que ele realmente exista.
O problema nos obriga a refletir. Suponhamos que Deus exista; que ele seja tão justo quanto a Igreja diz que é; que seja injusto impor sobre alguém um fardo pesado sem o consentimento dessa pessoa; que esta vida seja breve, um simples sopro de fumaça comparado com o que a eternidade deve ser; que ninguém possa ser justamente condenado a um castigo terrível se não tiver consciência de haver cometido um crime terrível. Então como pode o suposto Deus ser justo? Se ele for justo, então logicamente toda alma que atinja a idade da razão deve viver bastante para pelo menos ter idéia da escolha eterna que está fazendo, e da conseqüência de tal escolha. No entanto, como isso pode acontecer, por exemplo, no mundo de hoje, onde Deus é tão universalmente abandonado e desconhecido na vida dos indivíduos, famílias e Estados?
A resposta só pode ser que Deus vem antes de indivíduos, famílias e Estados, e que ele “fala” dentro de toda alma, antes de todos os seres humanos e independentemente de todos eles, de modo que mesmo uma alma cuja educação religiosa tenha sido nula ainda tem idéia de estar fazendo uma escolha a cada dia de sua vida, que só ela está fazendo aquela escolha, e que a escolha tem conseqüências tremendas. Mas outra vez, como é que isso pode acontecer, dada a impiedade de um mundo como o nosso atual?
Porque a “fala” de Deus às almas é muito mais profunda, mais constante, mais presente e mais atraente do que jamais poderá ser a fala de qualquer homem ou outro ser. Só ele criou nossa alma. Ele continuará a criá-la em cada momento de sua existência sem fim. Ele é portanto mais íntimo dela em cada momento seu do que até mesmo seus pais que simplesmente montaram seu corpo – dos elementos materiais cuja existência é mantida somente por Deus. E a bondade de Deus está da mesma forma atrás e dentro e embaixo de toda coisa boa que acontecer à alma nesta vida, e no fundo a alma está consciente de que todas essas coisas boas são meras derivações da infinita bondade de Deus. “Fique quieta”, diz Santo Inácio de Loiola a uma pequena flor, “eu sei de quem você está falando”. O sorriso de uma criancinha, o esplendor diário da Natureza a cada instante do dia, música, todo céu uma obra-prima da arte e assim por diante – mesmo se amadas com um amor profundo, essas coisas dizem à alma que existe algo muito maior, ou – Alguém.
“Junto de vós, Senhor, me refugio, não seja eu confundido para sempre” (Sal XXX, 2).”
(Mons. Richard Williamson, F.S.S.P.X, Flowers Speak)