segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A verdade sobre Galileu (II)

“O Pe. Grassi sustentou duas acusações fundamentais contra Galileu.
O nominalismo de Ockham, segundo o qual as qualidades das coisas são apenas nomes, mas não existem na realidade. Se vejo a cor vermelha no objeto, essa cor está na minha percepção, mas não realmente no objeto. Se vejo a luz do sol, ela está na minha percepção, mas não no sol. Com efeito, é um absurdo.
O “atomismo” de Demócrito: se os átomos ou corpúsculos ou “mínima” constituem a substância do objeto, então as percepções sensíveis, que são o produto dessas partículas, fazem também parte da substância da coisa.
Se, pois, nas espécies eucarísticas, as formas sensíveis do pão e do vinho subsistem após a consagração, é que a substância das mesmas continua presente. Por conseguinte, não ocorre transubstanciação, mas consubstanciação e a tese de Galileu não faz senão retomar a de Lutero e dos protestantes. Galileu, o filósofo oficial da corte pontifícia e o grande amigo do papa, não passa de um protestante camuflado...
Com efeito, as congregações gerais dos jesuítas sempre condenaram o “atomismo” em voga entre os humanistas e proibiram que fosse ensinado nos colégios da Companhia. Condenação renovada no curso do século XVII com uma notável insistência.
A 1º de abril de 1623, a Companhia de Jesus havia interdito o ensinamento da doutrina do atomismo nos colégios. Não se deve identificar a substância com a extensão e as qualidades. As partículas são apenas as medidas da matéria. O atomismo não passa de uma forma sutil de materialismo. Se é a matéria que produz as formas sensíveis e as qualidades das coisas, então ela é a criadora dessas formas; ela é então de natureza divina...
Essa condenação foi renovada em 1641, em 1643 e 1649.
Eis a forma protestante: “O pão e o Corpo de Cristo estão realmente, mas não substancialmente nem essencialmente presentes, porque se o pão não tivesse mais substância, ele não seria mais nada e por conseguinte não seria nem sequer um sacramento.” Vê-se aí a velha tentação nominalista.
Por onde se vê que os ensinamentos filosóficos, contrários ao bom senso e à razão, provocam conseqüências desastrosas nas afirmações da doutrina católica. O filósofo cristão não pode, pois, ensinar o nominalismo nem o atomismo sem atacar a fé.
A acusação era grave, e Galileu o compreendeu logo. Ficou com medo. Tentaram tranqüilizá-lo. Seu livro havia recebido imprimatur e aprovação entusiasta do papa. Ele creu poder esperar impunidade, mas a suspeita de heresia começava a circular pela cidade, não obstante a proteção do papa. Aconselhou-se a Galileu que não retrucasse, que guardasse silêncio; diríamos hoje, vulgarmente, que “enfiasse a viola no saco”; pois Galileu bem sabia que a acusação estava fundamentada e que o Pe. Grassi havia compreendido bem a intenção subjacente do autor.
A funda dos cardeais
Aos 18 de abril de 1631, na Capela Sixtina, em presença do papa Urbano VIII e durante a liturgia da Sexta-Feira Santa, o Pe. Grassi, eminente jesuíta, pronunciou uma oração solene que deve ter soado desagradavelmente aos ouvidos do papa:
“Devemos deplorar, Reverendos Padres, uma terrível destruição e uma imensa ruína. O edifício que a Sabedoria Divina havia erigido com suas próprias mãos, esse templo eterno da paz entre Deus e os homens foi demolido por saqueadores ímpios, destruído, reduzido a pó.
Com efeito, como é atroz assistir à cena da ruína iminente. Esses instrumentos, essas alavancas, esses operários, tudo está pronto para a espantosa empreitada de destruição...Os guardiães do templo, novos levitas, dormem um profundo sono. Mas o terror os desperta agora do profundo sono. A turba dos saqueadores avança. O véu do templo já está arrancado, quando a alma se separa de Cristo; toda a estrutura tomba e um tal ruído semelhante ao da morte, mesmo que estejam dormindo, os obriga a acordar. As coisas sagradas são tripudiadas, os altares profanados, o templo em ruína. Onde nos refugiaremos, onde, pergunto eu?”
Que se passava então? O exército sueco de Gustavo Adolfo percorria a Europa, destruindo, incendiando, assassinando tudo em sua passagem. Os exércitos imperiais estavam desamparados e impotentes diante de tal fúria. Gustavo Adolfo aproximava-se dos Alpes. A 7 de abril ele estava na Baviera, pilhando e saqueando os colégios dos jesuítas, condenando-os a fugir ou a esconder-se. A situação era grave e, entretanto, “os levitas dormiam”. O papa, evidentemente, estava designado. Gustavo Adolfo ameaçava Roma. Reinava a insegurança. Era preciso dar um basta.
Várias vezes já os cardeais haviam censurado ao papa sua complacência com os hereges em Roma. Reclamava-se uma ação enérgica, uma cruzada católica contra a heresia e as novidades subversivas.
A 8 de março de 1632, o cardeal Borgia levantou-se, denunciou as fraquezas do papa e começou a ler um memorial “de grande importância para a religião e a fé”. Repreendeu ao papa sua atitude conciliatória em face do rei da Suécia. Urbano VIII quis cortar-lhe a palavra e ameaçou-o de deposição. O próprio irmão do papa quis apanhá-lo à força, mas os outros cardeais agruparam-se em torno dele para protegê-lo. Foi um tumulto, um escândalo em pleno consistório.
O fato chegou ao conhecimento de todas as chancelarias. A Espanha reagiu imediatamente, protestou diplomaticamente contra as fraquezas do papa diante dos inimigos da religião, apoiou energicamente o cardeal Borgia, que se tornara o verdadeiro senhor do consistório. Cogitou-se a deposição do papa.
Alguns dias mais tarde, o imperador Habsburgo enviou a Roma seu conselheiro, o cardeal jesuíta Peter Pazmani, que veio repetir ao papa as mesmas ameaças de Madri. O papa teve de prometer um maior rigor para a defesa da ortodoxia. “A admirável conjuntura” estava terminada.
O falso processo
Em março de 1632, Galileu publicava o Diálogo, honrado com um breve do papa e munido de imprimatur. Galileu aí retomava as teses de Copérnico sobre os movimentos da terra e as marés, com a autorização do Vaticano, sob a condição de não mesclar considerações sobre as Escrituras e apresentando-as como hipótese.
Galileu aproveitou o ensejo para retornar ao atomismo de Demócrito e atacar Aristóteles. Identificou a substância corporal com seus componentes materiais e quantitativos, reduzindo o real a seu valor numérico. Mas evitou empregar o vocábulo “átomo”, bem como falar em “substância”. Seu amigo e cúmplice, Campanella, cuja reputação de herético era notória, felicitou-o em uma carta de 3 de abril de 1632 por renovar os antigos pitagóricos e os adeptos de Demócrito. A carta tornou-se pública. A cumplicidade era evidente.
Uma denúncia foi enviada ao cartório do Santo Ofício. Imediatamente, o papa confiou o assunto a seu sobrinho, o cardeal Barberini. Ele não podia deixar o affaire em mãos do cardeal Borgia, prefeito do Santo Ofício, que o acusava abertamente de indulgência culpável e de falta de firmeza na obra da Contra-Reforma. Levar o caso ao Santo Ofício teria sido um verdadeiro suicídio político para o papa, um enorme escândalo, a prova da sua cumplicidade com os inovadores.
O cardeal sobrinho formou uma comissão especial independente do Santo Ofício. Assegurou-se a Galileu acerca das intenções benévolas do papa, seu grande amigo, e o cardeal sobrinho explicou ao núncio de Florença, em uma carta de 25 de setembro de 1632: “As obras de Galileu foram entregues a uma comissão particular com o cuidado de examinar e de ver se se poderia evitar seu envio à Sagrada Congregação do Santo Ofício”. O papa precisou ao mesmo núncio que ele havia feito um grande favor a Galileu não submetendo tal matéria ao tribunal, mas a uma congregação particular, criada expressamente, o que era muito significativo.
Galileu foi intimado pelo cardeal sobrinho, incumbido da sua defesa. Ele devia reconhecer haver defendido a teoria de Copérnico, mostrar-se conciliador, não protestar: “O tribunal então poderá ser clemente com o acusado e Sua Santidade ficará satisfeito”. Assim se fez. Galileu foi obrigado a proclamar publicamente em uma igreja a condenação do heliocentrismo já formulada antes contra Copérnico. Ele fez essa declaração a 22 de junho de 1633, para satisfação de todos. O papa deu-lhe um castelo como residência vigiada.
Mas o cardeal Borgia, indignado com a manobra, havia-se recusado a assinar o processo verbal. No dia seguinte, o Pe. Grassi foi exilado para Savóia. Impôs-se-lhe interdito de publicar qualquer material; como jesuíta fiel e obediente, submeteu-se. O texto da segunda denúncia contra o Diálogo desapareceu dos arquivos, assim como as atas das assembléias da Comissão Especial. A limpeza foi geral e bem feita.
Ponto final. O caso Galileu estava encerrado. O resto não passa de lenda, mito, mentira, impostura.
O fiasco de um pontificado
A última façanha, se assim se pode dizer, do papa Urbano VIII foi a fuga bem sucedida de Campanella.
Tomás Campanella, dominicano nascido na Calábria, em Stilo, possuía uma imaginação fecunda, conhecimentos extensos em cabala e alquimia, idéias tomadas de empréstimo a Joaquim de Fiore, uma atividade desordenada e furibunda.
Fazia-se chamar de “Messias”, anunciava as catástrofes do fim dos tempos. Como suas predições tardavam a cumprir-se, imaginou urdir uma conspiração para expulsar os espanhóis do Reino de Nápoles. Ele havia comprometido numerosos fidalgos e trezentos monges. Mas foi detido a tempo e condenado à prisão em Nápoles.
Campanella havia continuado a cruzada contra a escolástica e contra Aristóteles. Mas Urbano VIII veio em seu socorro. Durante três anos, ele negociou sua libertação com a corte de Madri. Em vão. Finalmente, prometeu ao rei da Espanha que o faria julgar pelo Santo Ofício. O rei, sem desconfiança, entregou-lho em 1626, após 25 anos de prisão. Imediatamente, o papa concedeu-lhe a liberdade e admitiu-o em sua intimidade.
Campanella publicou uma Apologia por Galileu e uma Defesa do Sistema de Copérnico, não Contrário à Escritura em 1634. Sua obra-prima, se se pode dizer, foi a A Cidade do Sol em que ele pregava uma comunidade total de bens e de pessoas, na esteira da Utopia de Thomas Morus.
Mas suas heresias eram conhecidas. Sofria ameaças, recorria-se ao Santo Ofício. Em desespero de causa, Urbano VIII entendeu-se com o conde de Noilles, embaixador da França, para ajudá-lo a fugir, disfarçado de cavalheiro. Ele foi calorosamente recomendado a Richelieu e ao rei Luís XIII. Deste obteve uma pensão de 3.000 libras e fixou-se em Paris onde trabalhava na biblioteca do rei. Gabriel Naudé, bibliotecário chefe, agradeceu publicamente a Urbano VIII, “em nome da ciência”, por haver protegido Campanella com sua autoridade. Ora, Naudé era membro da “Fraternidade Rosacruz”, cujo palavra de ordem era: “Guerra ao papa, abolição do culto”.
Quando a inquisição real de Nápoles se deu conta do subterfúgio, exigiu que lhe fosse devolvido seu prisioneiro. O papa recusou.
Conclusão
Em toda esta história há círculo vicioso. Humanistas, rosacruzes, lincei e outros formavam entre eles como uma vasta teia de aranha recobrindo toda a Europa. Esses homens estavam ligados por correspondências regulares e cumplicidades ativas, como acabamos de vê-lo.
O caso Galileu só pode ser compreendido realmente à luz de uma tragédia mais vasta, a tragédia do combate do protestantismo contra os dogmas da fé católica e contra a filosofia escolástica que é seu suporte necessário. Dava-se aparência de um ataque a Aristóteles e aos jesuítas do Colégio Romano. Na verdade, e de uma maneira astuta, trabalhava-se com encarniçamento por matar a fé nas almas.
Quando um papa é o eleito de um conchavo, quando sua eleição resulta de manobras subterrâneas, para dar o poder hierárquico a um amigo e cúmplice, este se acha em uma situação muito desconfortável.
Urbano VIII não pode declarar sua intenção profunda. Uma vez instalado na cátedra de Pedro, é obrigado, por sua função magisterial, a continuar ensinando as verdades de fé em que não crê mais e gostaria de destruir. Ele deve manobrar sutilmente entre aqueles que “fizeram” sua eleição, e lhe recordam sem cessar o que esperam dele, e o conjunto do clero romano fiel, que ignora essas manobras e se acha perplexo e ressabiado, diante de situações mal compreendidas.
É necessária uma singular aptidão para utilizar as fórmulas da fé católica, esvaziadas de suas substâncias, e colocá-las a serviço do panteísmo e da gnose.
Os mais perspicazes compreenderam. Foram os jesuítas do Colégio Romano, publicamente e violentamente atacados, também os cardeais indignados. Houve, em Roma, na ocasião, homens muito corajosos e enérgicos para dirigir-se firmemente contra um papa prevaricador. Mas houve também dois príncipes cristãos, o rei Filipe IV da Espanha e o imperador Fernando II de Habsburgo, que puseram todo o prestígio de sua autoridade e de seu poder contra Urbano VIII, até ameaçando-o de deposição.”
(Étienne Couvert, A Verdade sobre Galileu)

Tradução do Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa