segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Um trecho profético de Dostoiévski em Os Possessos

“No esquema dele cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e do talento. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis. Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas. Os talentos superiores não podem deixar de ser déspotas, e sempre trouxeram mais depravação que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas – eis o chigaliovismo. Ah, ah, ah, está achando estranho? Sou a favor do chigaliovismo! (...) No mundo só falta uma coisa: obediência. A sede de educação já é uma sede aristocrática. Basta haver um mínimo de família ou amor, e já aparece o desejo de propriedade. Vamos eliminar o desejo de propriedade. Vamos eliminar o desejo: vamos espalhar a bebedeira, as bisbilhotices, a delação; vamos espalhar uma depravação inaudita; vamos exterminar todo e qualquer gênio na primeira infância. Tudo será reduzido a um denominador comum, é a plena igualdade. (...) Mas precisamos também de convulsões; disso cuidaremos nós, os governantes. Os escravos devem ter governantes. Plena obediência, ausência total de personalidade, mas uma vez a cada trinta anos Chigalióv lançará mão também de convulsão, e de repente todos começam a devorar uns aos outros, até um certo limite, unicamente para não cair no tédio. O tédio é uma sensação aristocrática; no chigaliovismo não haverá desejos. Desejo e sofrimento para nós, para os escravos o chigaliovismo. (...) Os nossos não são apenas aqueles que degolam e ateiam fogo, e ainda fazem disparos clássicos ou mordem. Gente assim só atrapalha. Não concebo nada sem disciplina. Ora, sou um vigarista e não um socialista, eh, eh! Ouça, tenho uma relação de todos eles: o professor de colégio que ri com as crianças do Deus delas e do berço delas; já é dos nossos. O advogado que defende o assassino culto que por essa condição já é mais evoluído que suas vítimas e que, para conseguir dinheiro, não pode deixar de matar, já é dos nossos. Os colegiais que matam um mujique para experimentar a sensação, são dos nossos. Os jurados que absolvem criminosos a torto e a direito são dos nossos. O promotor que treme no tribunal por não ser suficientemente liberal é dos nossos. Os administradores, os escritores, oh, os nossos são muitos, um horror, e eles mesmos não sabem disso! (...) O Deus russo já se vendeu à ‘vodca barata’. O povo está bêbado, as mães estão bêbadas, as crianças estão bêbadas, as igrejas estão vazias, e ouve-se nos tribunais ‘um balde de vodca ou duzentas chibatadas’. Oh, deixem crescer a geração! Só lamento que não haja tempo para esperar, senão só para deixá-la mais beberrona. Ah, que pena que não haja proletários! Mas haverá, haverá, para isso caminhamos... (...) Ouça, eu mesmo vi uma criança de seis anos levando a mãe bêbada para casa, e esta a insultava com palavras indecentes. Você pensa que estou contente com isso? Quando essa coisa estiver em nossas mãos, talvez os curemos... Se for necessário, nós os mandaremos para o deserto por quarenta anos... Mas hoje precisamos de depravação por uma ou duas gerações; de uma depravação inaudita, torpe, daquela que o homem se transforma num traste abjeto, covarde, cruel, egoísta – eis de que precisamos!”
(Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, Os Possessos)

Tradução de Paulo Bezerra