quinta-feira, 19 de maio de 2011

O dever de resistir (II)

Obediência a quem?
A pergunta não é de todo estranha, se pensarmos que a autoridade de instituição divina na Igreja está hoje paralisada por uma falsa colegialidade que reduziu a autoridade do Papa a um papel de representação e submeteu a autoridade de direito divino dos bispos às Conferências episcopais, de instituição humana. Ela fez assim destas duas autoridades o disfarce dos neomodernistas que, através dos diferentes órgãos colegiais, exercem hoje o poder efetivo na Igreja.
A tática própria dos modernistas de se infiltrarem por toda a parte e de se manterem ocultos o mais possível encontrou uma aplicação no governo pós-conciliar da Igreja, ainda mais do que nos documentos do Concílio. Nestes documentos o modernismo está presente por toda a parte, mas está também cuidadosamente escondido pela presença de fórmulas irrepreensíveis, que contrabalançam as fórmulas inquietantes (do mesmo modo que, inversamente, textos irrepreensíveis estão às vezes neutralizados por uma simples nota). De igual maneira, no pós-concílio, os neomodernistas legislam em todos os domínios, mas sob a cobertura da autoridade legítima.
Segue-se que, em realidade, o católico que, como é de seu dever de consciência, resiste à nova orientação eclesial, resiste não à autoridade legítima, mas ao poder oculto que a suplantou e a manipula. E pouco importa que esta transferência ilegítima da autoridade para os órgãos colegiais seja alcançada com o acordo, mais ou menos consciente, dos detentores da autoridade legítima divinamente instituída: "não está no poder do homem renunciar a um direito divino" (Pio IX, "Quartus supra vigesimum").
O dever
Entre aqueles que não estão de acordo, no seu íntimo, com a nova orientação eclesial e que não se sentem obrigados a obedecer-lhe, muitos justificam inércia e passividade repetindo para si e para outros que "portae inferi non praevalebunt" (as portas do inferno não prevalecerão absolutamente contra ela. Mt. 16,18): a indefectibilidade foi prometida à Igreja e isto hoje dispensaria de resistir ou de combater aos que trabalham por destruí-la de dentro (pois se trata realmente disto, dado que não se pode compreender a autodestruição da Igreja no sentido próprio, uma vez que a Igreja, mesmo quando seus ministros a maltratam, é sempre a esposa fiel do Verbo Encarnado). Entretanto eles não pensam que a indefectibilidade foi prometida justamente à Igreja e não aos homens (da Igreja), nem mesmo a presença da Igreja em tal ou tal parte do mundo. A história da Igreja está aí para atestá-lo: o "não prevalecerão" não impediu que a África católica fosse apagada pela invasão muçulmana; não salvou do cisma as já gloriosas igrejas orientais, não impediu que a Inglaterra, a Suécia, a Suíça, os Países Baixos, Alemanha e outras nações européias já católicas tombassem com a pseudo-reforma protestante no cisma e na heresia. Porque se é verdade que "as portas do inferno não prevalecerão" e que a promessa de Deus não pode deixar de realizar-se, "isto não significa que a promessa se deva entender no sentido fatalista e que os membros da Igreja, em particular os sacerdotes, devam deixar a Deus apenas o cuidado de manter e de guardar a Igreja, sua Fé e seus costumes. Mesmo aqui Deus se serve das causas segundas. A Igreja universal é seguramente sustentada e guardada por Deus, mas a vida e a duração das igrejas particulares dependem, em grande parte, da cooperação dos fiéis. Partes importantes da Igreja se perderam por culpa dos fiéis e mais ainda por culpa dos sacerdotes" (Bartmann, "Dogmática", V. II, pg. 449).
Daí o dever que, hoje, incumbe a todos, sobretudo ao clero e aos religiosos, mas igualmente aos simples fiéis, de resistir à nova corrente eclesial.
Que resistência?
A resistência que exigem as circunstâncias atuais é uma resistência externa e interna. Recusar o compromisso com a nova orientação eclesial, conservar a fé e as práticas recebidas pela Igreja antes da crise atual, manifestar abertamente seu próprio desacordo, testemunhar, em suma, sua fidelidade à fé Católica e não deixar que os demolidores, no interior da Igreja, tenham a consciência tranqüila: tudo isso é o que chamamos resistência externa. A que denominamos resistência interna necessita de um raciocínio mais longo.
Dia 21 de dezembro de 1992 foi o oitavo aniversário do falecimento do Padre Francisco Maria Putti, que fundou o periódico Si Si No No para reconfortar os hesitantes e os isolados, para despertar os adormecidos, para ser uma repreensão pública aos demolidores da Igreja e para relembrar à autoridade a gravidade da crise da Igreja. Em sua fé viva ele não cessou jamais de se espantar com a indiferença de tantos "bons", sobretudo ministros de Deus e membros da hierarquia, e repetia que se todos aqueles que estavam em condições de avaliar a desastrosa realidade tivessem encontrado coragem de manifestar sem temor sua própria desaprovação, o neomodernismo jamais teria triunfado na Santa Igreja de Deus. Infelizmente, a desforra modernista surpreendeu o mundo católico — clero, religiosos e leigos — num momento de grandíssima fraqueza espiritual. O pós-concílio fez realmente desabar numerosas fachadas, há muito mantidas em pé somente graças aos esforços tenazes e generosos dos Pontífices Romanos, desgraçadamente não secundados pelos próprios membros do episcopado que desobedecem assaz freqüentemente. Basta-nos relembrar aqui "esta resistência, muitas vezes passiva mas real" oposta às disposições antimodernistas de São Pio X, não apenas pelos modernistas e seus simpatizantes, mas também por eminentes cardeais; resistência posta às claras e documentada na causa da canonização deste grande Pontífice (cf. Beatificationis et canonizationis servi Dei Pii Papae disquisitio circa quadam objectiones modi agendi servi Dei respicientes in modernismi debellatione, Typis polyglottis Vaticanis, 1950, p. 59).
"Existe uma escola [na Igreja], escrevia então o cardeal de Lai, que encoraja e defende o princípio das idéias largas, do mínimo a crer e a fazer, escola que de degrau em degrau desce ao puro racionalismo, ao ceticismo e ao panteísmo" (ibi., pg. 65). Era a escola dos católicos poluídos pelo liberalismo, "escola" que triunfou no Concílio Vaticano II. Com esta luz compreende-se a significação e toda a gravidade dos apelos insistentes à oração e à penitência que desde cerca de dois séculos a Santíssima Virgem dirigiu a um mundo católico disposto a usufruir das vantagens materiais da religião cristã, mas sempre mais hostil às exigências da Fé que manda amar a Deus sobre todas as coisas e até pelo sacrifício de si mesmo.
Se inimigos exteriores e traidores internos da Igreja foram os principais responsáveis pelo desastre pós-conciliar, este desastre foi contudo longamente preparado e em seguida possibilitado por um grande número de sacerdotes e de religiosos espiritualmente negligentes e ociosos. Estes acreditavam ter feito bastante ao salvar o santuário de sua própria alma da profanação total. Esta responsabilidade foi igualmente partilhada por uma grande massa de leigos descuidados de sua espantosa e culpável ignorância e alheios ao esforço ascético que impõe a vida cristã mesmo não consagrada. Um semelhante mundo católico, satisfeito com pertencer de um modo puramente exterior à Igreja, não poderia encontrar estas graças extraordinárias de luz e de força requeridas pela urgência extraordinária de um ataque desencadeado contra a Fé em nome da autoridade e da obediência a um Concílio ecumênico.
Entretanto, tudo concorre para o bem daqueles que tendem para Deus com um coração sincero, mesmo aquilo que, como a atual crise eclesial, parecia menos favorável à vida espiritual. De fato, a atual crise da Igreja, para quem quer compreendê-la, é um apelo a abandonar toda a presunção pela qual se diria que o fato de pertencer à Igreja pudesse salvar sem uma Fé vivida e conhecida. "Endireitai vossos caminhos e vossas obras e eu estarei convosco neste lugar. Não vos fieis absolutamente em palavras mentirosas." "Aí está o santuário de Yahvé. Eu vou tratar este templo que traz o meu nome e no qual vós colocais vossa confiança, e este lugar que eu dei a vós e a vossos pais, como eu tratei a Siló [o qual não foi salvo da destruição apesar de ter obrigado durante muito tempo a Arca do Senhor]" (Jr. 7,3-4 e 14).
O remédio, portanto, deve atingir a raiz do mal: a ausência de fé viva animada por uma fervorosa caridade, e portanto a ausência de espírito sobrenatural, foram as causas profundas da crise atual e por conseguinte, na medida em que cada um se esforça por readquirir ou aumentar em si esta fé viva e este espírito sobrenatural, nesta mesma medida terá dado sua mais valiosa contribuição à superação da crise. É a este compromisso pessoal e interior que chamamos resistência interna. O deserto da fé em que vive hoje o católico torna mais árduo, mas não impossível, este compromisso. É sempre possível, de fato, retornar ao luminoso Magistério oposto aos erros modernos pelos Pontífices Romanos, de Pio IX a Pio XII, é sempre possível procurar ou freqüentar, ou ao menos manter-se em contato com estes oásis de fé viva e de espírito sobrenatural que são os priorados de Sua Excelência Dom Marcel Lefebvre. Enfim, é sempre possível para todos, por toda a parte e sempre, rezar. Este esforço, que nas circunstâncias atuais não pode deixar de se impor, será também uma forma de reparação que atrairá sobre nós, sobre a Igreja, sobre as almas, a misericórdia de Deus. "Ipse castigavit nos propter iniquitates nostras et Ipse salvabit nos propter misericordiam suam". Ele nos castigou por causa de nossas iniqüidades e nos salvará por causa de sua misericórdia (Tb. 13, 5).”
(Artigo do jornal Sim Sim Não Não, janeiro de 1993)

http://www.capela.org.br/Crise/Sisinono/resistir.htm