domingo, 3 de abril de 2011

O câncer espiritual da Igreja (II)

“Penso poder dizer que esta argumentação baseada em duas igrejas mortalmente opostas é a única a proteger todos os dados da teologia da Igreja diante da avalanche que tudo carregou. Tive, por duas vezes, a oportunidade de usar esta argumentação, em situações parecidas: no Barroux, em 1988, diante de Dom Basile, quando este foi indicado por Dom Gérard para responder às minhas questões sobre os acordos com Roma. Era a época do sofisma do “perímetro visível”. Dom Basile achou que a existência real da Outra conduziria ao sedevacantismo, isso porque ele não quis raciocinar na possibilidade de haver um só papa para duas igrejas, pois não encontrava nada sobre isso nos manuais de teologia ou nos exemplos da história da Igreja (lógico). A segunda vez foi em 2001, diante de um dos padres de Campos que afirmou que esta doutrina significaria que as portas do inferno teriam prevalecido sobre a Igreja, como se a presença da Outra destruísse a verdadeira Igreja. Ora, nem um nem outro quiseram examinar a questão até o fim.
Não me parece possível que alguém negue o caráter excepcional, surpreendente e inesperado da crise atual. Uma crise que dura já quarenta anos, tendo à sua frente já três papas com praticamente todo o episcopado. Como não considerar o grande mistério de vermos o corpo da Igreja trabalhando ativamente para a destruição da Esposa de Cristo? Pode-se afirmar sem temeridade que esta crise nada tem a ver com o mistério de iniqüidade anunciado por S. Paulo aos Tessalonicenses, quando percebemos claramente que a grande apostasia que o acompanha já está generalizada? Não estaria aí, justamente, a causa do enorme espanto que sentiu São João quando viu a prostituta do Apocalipse que carregava em si seu nome: Mistério?
A natureza da crise começa a ser melhor estabelecida pela denominação de uma Outra substância, de uma Outra sociedade de bispos tendo o próprio papa como chefe, de uma Outra religião que nos faz pensar nesta abominação da desolação posta no lugar santo, vista pelo profeta Daniel e lembrada por Nosso Senhor em circunstâncias que nos fazem tremer. Já podemos considerar com certo recuo nossas relações com Roma, antes mesmo de aprofundarmos nossas considerações sobre a Outra.
Antes de tudo, desaparece a questão mais delicada:
- Vocês são sedevacantistas? – Não, é justamente o que não somos.
- Então, para vocês, o papa é verdadeiramente o Vigário de Cristo? – Sim, ele é, ele tem todos os sinais. Ele ocupa a sede de Roma, é reconhecido por todo o mundo como papa, e exerce atos de governo próprios ao Pontífice Romano. Esta questão já não se coloca por diversas razões: não há resposta possível porque só um papa futuro poderá julgar o papa atual. Enquanto a Igreja não declarar este juízo solene nossa consideração deve se limitar aos sinais visíveis do pontificado, e nesse caso devemos afirmar que João Paulo II é o Vigário de Cristo.
- Como pode o papa ensinar tantos erros gravíssimos, fazer gestos tão escandalosos, sem perder o carisma papal? – Porque ele é, ao mesmo tempo, o chefe de uma falsa religião fundada no Vaticano II, quando os bispos do mundo todo estabeleceram a Outra. Daí a necessidade de refletir sem medos sobre os fundamentos dessa Anti-Igreja para estabelecer que, efetivamente, ela se constitui como uma falsa religião, com um clero, ritos próprios, um corpo de doutrina e leis específicas.
- Como explicar que a existência dessa Outra não seja a derrota total da verdadeira Igreja Católica? – Aqui o mistério aumenta, sem dúvida. A Santa Igreja Católica está sempre viva, mas sitiada e invadida, como nos dizia Corção acima. Eu não usaria a imagem de uma invasão militar, com um governo ilegítimo esmagando o rei, ou a imagem da Aids espiritual usada por Mons. Lefebvre, mas a invasão de um câncer espiritual, como uma pele, uma fina película transparente e, sobretudo, viva, que engole a Igreja Católica tornando-a prisioneira, sem movimentos próprios, sem palavra, sem rito nem lei. Como todo câncer, ela nasce de dentro e se desenvolve sem controle do organismo, levando-o por um caminho de morte. A transparência desse câncer vem do fato que o governo da Outra é feito pelos mesmos homens, a mesma hierarquia que deveria governar a Igreja Católica. Assim, quando um Mons. Lefebvre, por exemplo, ousava se levantar contra o papa, este ou os bispos lhe apontavam o dedo: atenção, é o papa, são os bispos, obedeça! É claro que nosso bispo, sendo perfeitamente católico, queria obedecer e demonstrar seu apego à Santa Sé, como tantas vezes ele exprimiu, mas desde que ele se aproximava, a voz que ouvia não era a da Mãe, mas uma voz estranha, desconhecida e mesmo monstruosa. Foi diferente em 1988? E em 2001, com Mons. Fellay? As exigências impostas a Mons. Lefebvre de pedir desculpas, em 6 de maio de 1988, ou a recusa de liberar a missa tradicional a todos os padres porque seria um ultraje ao Vaticano II, em 2001, são sinais impressionantes de que as autoridades falavam antes como representantes da Outra e não como chefes católicos.
Será que um papa, enquanto papa, representando a verdadeira Igreja, podia recusar-se a um gesto como este em favor de uma missa santa, perfeitamente legítima e ortodoxa?
- Alguém poderia ainda objetar que a missa de uma tal igreja diabólica não poderia ser válida, enquanto que o próprio Mons. Lefebvre e tantos outros sempre afirmaram que a nova missa é válida. – Ainda aqui, a única resposta que mantém intactos todos os dados da teologia vem dessa usurpação. O câncer que cobre a Igreja não é apenas uma metáfora. É uma realidade analógica, um verdadeiro câncer espiritual. Como tal, ele lança seus tentáculos mórbidos no interior do Corpo Místico de Cristo para sugar sua vida e a eficácia de seus ritos. Ele domina de tal modo a Esposa de Cristo, ele a mantém em tal controle que esta vê as conseqüências terríveis dessa usurpação de sua vida sem poder nada fazer, impotente para vir em auxílio de seus filhos cegos e conduzidos à morte da heresia, do sacrilégio, do pecado.
Todos os sacramentos e sacramentais, tudo o que dependerá de um rito, será assim sugado do coração mesmo da Igreja. E os fiéis serão enganados quando, assistindo a um rito novo, pensarão ver nele algo de ainda católico.
Que esperteza do demônio! Quanta audácia! E que diabólica satisfação não deve ele sentir quando nos vê batendo cabeça uns contra os outros, sem saber muito bem como nos posicionar diante dessa nova versão do William Wilson do conto de Edgar Allan Poe.
Se Mons. Lefebvre compreendeu que era necessário resistir até o fim, até ser “excomungado” – e ele disse bem que era excomungado pela Roma modernista, logo pela Outra – foi em razão da essência não-católica de todo esse mundo do Vaticano II. A famosa Carta que ele escreveu aos quatro bispos sagrados em 30 de junho de 1988 não deixa dúvidas: estes novos bispos deverão depositar aos pés do Santo Padre seu episcopado quando Roma será convertida à Tradição. Não antes, porque eles teriam que tratar com uma outra coisa, uma outra igreja, tendo as mesmas autoridades humanas. Se nós recusamos admitir que trata-se de Outra coisa, cairemos facilmente na armadilha onde caíram os padres de Campos: eles pretenderam que não era possível Deus permitir que toda a hierarquia se enganasse de caminho durante um tempo tão longo. Com a presença do câncer espiritual a questão do tempo não se coloca mais. Pode durar enquanto Deus quiser, como uma purificação necessária, ou como a Paixão da Igreja, seguindo a Paixão do seu Mestre.
Eis, então, a paz que começa a se fazer presente na alma católica libertada de seus escrúpulos, compreensíveis mas tão perigosos. Não será mais preciso ficar como que mal acomodado na cadeira, sem poder aceitar os erros e sem querer lançar para longe a hierarquia constituída. Firmemos nossos pés nesta terra da salvação que é a verdadeira Igreja de sempre. Se ela está prisioneira da Outra, sejamos nós também prisioneiros, excomungados, marginalizados, crucificados, como ela, nossa Mãe, está crucificada e se aproxima desta morte mística própria ao Corpo Místico de Cristo, o que, bem longe de ser uma derrota, é o início da vitória.
As duas tentações presentes em nossos meios já existiam no tempo de Nosso Senhor. Os sedevacantistas se parecem com os apóstolos escandalizados com a Cruz, que fugiram, um após outro, até que só ficou um, São João, o único que tinha atingido, antes mesmo de Pentecostes, um grau particular da Sabedoria. Já os que se inclinam para os acordos com Roma se parecem com os discípulos que abandonaram Jesus em troca da “legalidade” farisaica, porque as apóstrofes do Mestre contra as autoridades eram para eles insuportáveis. – E vós, quereis também partir?... Para onde iríamos, Senhor, só Vós tendes palavras de vida eterna.
Esta paz da alma só pode existir com a graça. Esta graça nada mais é do que um ato de fé sobrenatural continuamente em ação na alma. É um pecado contra a fé que fez cair todos os que partiram, por medo, por escrúpulos ou por excesso de rigorismo. Atraídos irresistivelmente por uma armadilha armada pela Outra, caíram os que fizeram acordos com Roma, nesta falta contra a Fé que responde a nossa questão do início: por que todos, unanimemente, acabam aceitando todo o Vaticano II? Faltando a fé, eles não conseguem mais enxergar nada além do câncer que esgana a verdadeira Igreja.
No outro pólo, os sedevacantistas não são atraídos, mas antes empurrados por uma estranha força que os afasta da Igreja por não suportarem a idéia de que ela possa estar crucificada sobre o Gólgota da religião pluralista de um mundo maçonicamente globalizado.
O ato de fé de que se trata aqui não é uma coisa fácil e evidente. A graça deve ser renovada todos os dias numa constante oração, numa profunda humildade, numa confiança total. Não na confiança nesses homens da hierarquia, visto serem verdadeiros traidores que preferem governar a Outra em vez de governar a Católica. Confiança em Deus, uma fé sem reservas no governo que a Cabeça, o Chefe, Jesus Cristo, exerce sobre sua Esposa mesmo no momento mais doloroso da crucifixão e da morte. Do Gólgota místico onde certamente ela se encontra, desta crucifixão que a torna mais unida e mais semelhante a seu Esposo divino, ou do túmulo onde ela há de passar seus três dias, ela ressurgirá na glória, como Nosso Senhor, para nos deixar a marca do seu Corpo visível, mais belo que nunca, mais santo, desta Esposa sem manchas nem rugas que será para nós a vida do Reino do Céu. “Ressurrexit sicut dixit, Alleluia!””
(Dom Lourenço Fleichman, O.S.B, A Igreja Católica e a Outra)

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