quarta-feira, 30 de março de 2011

O câncer espiritual da Igreja (I)

“A leitura do debate em torno das Cartas do Concílio, do Padre Berto, teólogo de Mons. Marcel Lefebvre no Concílio, publicado na revista dos dominicanos franceses Le Sel de la Terre nº 45, mostrou-me, ainda uma vez, o quanto a crise atual joga as almas em todas as direções no meio desta névoa espessa que cobre a Igreja.
Parece evidente que, quarenta anos após o Concílio, é necessário trabalhar mais a fundo a questão da natureza exata da crise modernista, sua essência, a base teológica explicativa de tal situação, sem esquecer os apoios nas Sagradas Escrituras e nos Padres da Igreja, também importantes. Assim, como conseqüência desta análise, devemos procurar estabelecer, de modo mais sólido, até que medida um católico é obrigado a seguir a Roma modernista, seus textos, seus ritos, seus acordos.
Devemos estar sempre disponíveis para fazer acordos, sempre de boa vontade e acolhedores para os textos do Papa ou dos cardeais, para em seguida criticá-los ou, ao contrário, devemos nos afastar de verdade das autoridades romanas e levar nossa crítica ao conjunto de textos da Roma conciliar, mesmo reconhecendo, aqui ou ali, algumas frases mais tradicionais? A questão não é nova. A novidade está nas circunstâncias atuais, quarenta anos depois do concílio e quinze depois das sagrações episcopais de 1988.
É um fato que cada vez que nos aproximamos dessa espécie de máquina, de mecânica que se estabeleceu nas congregações romanas, voltamos machucados, deixando presos nas rodas padres amigos, fiéis engolidos nos meandros da nova religião; um pedaço de nossas vidas.
Em 1988 foram os padres que partiram para a Fraternidade S. Pedro, Dom Gérard etc. Em 2001, os padres de Campos.
Por outro lado, esta recusa de se examinar com boa vontade os textos ou propostas vindas de Roma não seria um constante perigo de se cair no sedevacantismo? Eis o impasse onde podemos entrar se nossas considerações sobre a crise da Igreja seguirem o caminho das opiniões pessoais mais do que a busca da verdade. Porém, a crise atual é de tal sorte que temos necessidade de uma sabedoria toda sobrenatural: É aqui que é preciso um espírito dotado de sabedoria, nos diz São João no seu Apocalipse, nos capítulos 17 e 18 que tratam desta “Babilônia”, a cidade das sete colinas, fornicando furiosamente com todos os reis da terra, que carrega em si o seu nome: Mistério. Esta prostituta montada na besta, que fez o apóstolo ficar em extremo admirado. Apenas os dados da teologia da Igreja não são suficientes.
Devemos constatar que todos os que partiram com os acordos com o Vaticano, bem longe de continuar o mesmo combate de antes, como todos proclamaram em alta voz que fariam, foram contaminados profundamente pelo espírito do Vaticano II. E eu pergunto: de onde vem esta unanimidade? Por que razão todos passam a aceitar até mesmo a missa nova que sempre foi considerada como o principal mal do Vaticano II?
Antes mesmo de ser uma questão de doutrina, ela é uma questão de ordem espiritual. Os padres não começam a aceitar o Vaticano II devido a um estudo aprofundado da Nova Missa ou dos textos do Concílio, mas sim por uma mudança de orientação da alma, olhares que exprimem dois momentos diferentes. Antes, eles tinham uma graça, uma luz espiritual que penso estar presente em cada alma fiel, mesmo nas mais ignorantes, em cada um dos que seguiram o mesmo caminho traçado por Dom Lefebvre e por Dom Antônio de Castro Mayer. Em seguida, quando eles perdem esta graça, seguem às apalpadelas no escuro e se agarram na única realidade que encontram ao alcance, ou seja, a hierarquia. Esta será expressa de modo diverso: para uns será o “perímetro visível”, como queria Dom Gérard; para outros uma “administração apostólica”, como foi oferecido aos padres de Campos; ou ainda a Comissão Ecclesia Dei, como foi o caso da Fraternidade São Pedro. Quanto ao resto, os quarenta anos de perseguição, de escândalos, de heresias, não levam mais em conta devido à cegueira dos seus corações.
Para nós, que queremos ficar fiéis ao combate, mesmo nesta marginalização não desejada, como poderemos conciliar este estado de coisas com a necessidade real de nos submetermos à hierarquia da Igreja? Eis a questão delicada que se impõe. Por vezes esta questão é deixada na sombra para que a alma possa seguir seu caminho no combate pela fé, que é o essencial da vida católica. Aparentemente tudo segue seu curso. Mas desde que ela começa a ser colocada, aparece o temor e a angústia diante da possibilidade de se estar fora da Igreja, provocando o impasse, estas diferentes formas de se encarar a crise, um certo estado de alma que se manifesta por diferentes métodos de combate. É necessário achar uma explicação que seja ao mesmo tempo verdadeira teologicamente e pacificadora dessas angústias da alma católica, antes que ela perca a graça e se deixe levar pelas águas agitadas da Roma modernista.
Ora, esta explicação existe. Ela foi formulada pela primeira vez, que eu saiba, por Gustavo Corção, em 1976 e mesmo antes, em 1974. Corção mostrava que no cisma do Ocidente, no séc. XIV, os católicos se encontravam diante de uma única Igreja mas tendo dois papas, sem saber qual o verdadeiro. Hoje, ao contrário, estamos diante de um só papa, uma só hierarquia, mas que governa duas igrejas: a verdadeira Igreja Católica e a Outra. Vejamos como Corção entendeu a coisa:
Minha sofrida e firme convicção, tantas vezes sustentada aqui, ali e acolá é que existe, entre a Religião Católica professada em todo o mundo católico até poucos anos atrás e a religião ostensivamente apresentada como "nova", "progressista", "evoluída", uma diferença de espécie ou diferença por alteridade. São portanto duas as Igrejas atualmente governadas e servidas pela mesma hierarquia: a Igreja Católica de sempre, e a Outra.
A idéia já lhe viera em 1974. Num artigo chamado Estranhos Contrastes, sobre o comunismo no Chile e no mundo, Corção fala, talvez pela primeira vez, das duas Igrejas:
O que me parece difícil é fugir à evidência de um cisma, não do governo da Igreja, mas na sua própria personalidade: o que há no mundo moderno são duas Igrejas com parte da hierarquia comum ou alternante. E mais do que nunca tornou-se importante para todos bem demarcar a Igreja a que pertence... Tentarei trabalhar nesta idéia que me parece verdadeira e saudável.
Sublinhei acima a “diferença por alteridade” para mostrar que o autor explica esta questão pela citação da Epístola aos Gálatas, 1,6 – Se um anjo do céu vem vos ensinar um outro evangelho, que seja anátema – de onde se conclui que não é necessário que se ensinem heresias, doutrinas opostas, basta que se ensine outra coisa. Que os modernistas não venham nos dizer que os textos do Concílio não são heréticos. Não precisam ser para que sejam rechaçados pela Igreja de sempre e por todos os fiéis católicos. Eles são outra coisa. Basta. Mons. Tissier de Mallerais, um dos bispos sagrados por Mons. Lefebvre, dizia também isso:
Para ser heterodoxo, hoje em dia, não é mais preciso negar verdades de fé, como outrora, basta mudar o sentido das palavras... Assim, não é mais necessário, para ser herético, contradizer as verdades ensinadas pelo magistério tradicional, basta deslocar o enfoque, retirando-o do essencial para colocá-lo no secundário ou no acessório.
A questão principal é a identidade da Igreja Católica. Qualquer estudo da teologia desta crise deverá levar isso em conta.
São Paulo só pôde dar este preceito aos Gálatas por saber que, mesmo sem serem filósofos com ciência adquirida, todos têm no nível do senso comum a capacidade de distinguir o mesmo e o outro.
Em outro lugar Corção escreveu: Nenhuma reforma pode prevalecer sobre a identidade e sobre a continuidade dessa identidade.
Mons. Lefebvre, na famosa conferência de retiro espiritual dada em Ecône, em 1989, mostrou muito bem que a visibilidade da Igreja não pode se encontrar na “igreja oficial” porque esta não possui mais a unidade da fé necessária para estabelecer as quatro notas essenciais da verdadeira Igreja Católica.
A coisa não pára por aí. Precisamos tentar identificar esta falsa igreja que se faz passar pela Igreja militante com tal audácia que conseguiu ter em seu comando os próprios chefes da verdadeira Igreja católica. É ainda Gustavo Corção que nos mostra o caminho do nosso estudo:
Estamos evidentemente diante de alguma Coisa alterada, ou adulterada, que em vários sinais difere profundamente da Igreja Unam et Sanctam. Não podendo crer que a própria Igreja se alterou e se adulterou, como pretendem os que começam por duvidar de sua perseverante identidade, só nos resta pensar que outra substância está nos meios católicos sem ser católica. E faz questão de se inculcar como católica, pelos sinais exteriores e pelos títulos, não fazendo porém nenhuma questão de ser católica pelas idéias que difunde: “decifra-me ou devoro-te”.
Corção compreendeu que a crise da Igreja ia bem além de uma questão de reformas mais ou menos revolucionárias. Quando Jean Madiran, na revista Itinéraires, pedia ao papa que nos devolvesse... “a missa, o catecismo e as Sagradas Escrituras”, Corção completava:
Eu diria que, em vez de escolher os três pontos: a missa, o catecismo e as Escrituras, prefiro um só grito, uma única súplica dirigida ao papa para pedir a expulsão do espírito que anima todas essas reformas, que anima todas estas aberrações, estas demolições dentro da Igreja. Eu gritaria: “Devolva-nos o Catolicismo!” Sim, é a Igreja Católica, enquanto Católica, que passa por um processo de auto-demolição. É a catolicidade maternal e virginal da única Igreja de Cristo que é atacada, sitiada, invadida, em favor de um cristianismo vago, achatado, ressecado e exangue.
Esta palavra de Paulo VI – auto-demolição da Igreja – é utilizada freqüentemente por todos os defensores da Tradição, inclusive Mons. Lefebvre, como um argumento ad hominem. Ela não pode exprimir a realidade teológica da vida da Igreja e deve ser rechaçada. Não somente a Igreja não pode se auto-demolir como não há nenhuma necessidade para nós de recorrer a este argumento. O papa Paulo VI, que nada mais fez do que acelerar o trem do modernismo, se não gerou a Outra, é responsável por tê-la levado à maturidade. Não, a natureza desta crise só pode estar em outra coisa, acha-se na tentativa de demolição da verdadeira Igreja católica pelo câncer espiritual que a agarrou pela garganta, a sufoca e crucifica-a. É a Outra que procura destruir a Igreja, o que difere muito de uma auto-demolição.”
(Dom Lourenço Fleichman, O.S.B, A Igreja Católica e a Outra)