sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Mutazilitas e acharitas

“Se a ignorância é realmente uma bênção, então ninguém deveria ler O Fechamento da Mente Muçulmana.
Mas como prefiro conhecer a verdade, mesmo quando ela é preocupante, achei o estudo de Robert Reilly sobre o pensamento sunita o livro mais esclarecedor de 2010.
Reilly conta a triste história de como uma grande batalha filosófica no seio do Islã, entre os mutazilitas e os acharitas, moldou a história da fé e levou inevitavelmente à crise atual do Islã. Essa batalha intelectual – resolvida na metade do século IX – não foi uma árida discussão acadêmica; foi uma disputa de suma importância, com implicações que se tornariam óbvias para os cristãos atentos do começo do século XXI.
As principais disputas filosóficas geralmente sobrevivem por séculos. Os platônicos e os aristotélicos ainda hoje estão discutindo. Ecos dos debates no Concílio de Nicéia ainda podem ser ouvidos nos departamentos de teologia das universidades católicas. Mas os mutazilitas não estão mais discutindo com os acharitas. No Islã o debate acabou – não porque um argumento provou ser mais persuasivo que o outro, mas porque uma escola invocou sua autoridade para silenciar a crítica.
Os mutazilitas tentaram a mesma síntese entre fé e razão que os filósofos medievais realizaram no Cristianismo. Embora aceitassem inteiramente a autoridade do Corão, os mutazilitas acreditavam que a fé islâmica poderia sujeitar-se à análise lógica, e as palavras de Alá conformar-se-iam às exigências da razão humana.
Mas os acharitas tinham outra idéia. Essa escola de pensamento defende que o Islã exige submissão absoluta à vontade de Deus. Pensar que Alá esteja sujeito à razão é indecente, até blasfemo, na visão dos acharitas. Os acharitas não aceitam sequer a mais fundamental análise lógica do Corão; eles exigem obediência incondicional à palavra de Alá.
Quando algumas passagens do Corão entram em contradição com outras, os mutazilitas dizem que a razão guiará os fiéis até a verdade. Os acharitas não fazem uma tal concessão à razão humana. Se Alá deseja ser contraditório, eles dizem, quem somos nós, simples mortais, para questionarmos o todo-poderoso? Assim, o princípio da não-contradição, o princípio mais fundamental do pensamento racional, é posto de lado, e o Islã entra nos domínios da desrazão.
O triunfo dos acharitas, diz Reilly a seus leitores, representa o fechamento final da mente islâmica. Com os mutazilitas, algum diálogo inter-religioso teria sido possível. Mas com os acharitas, não há base para uma discussão razoável porque a própria razão é tida em desprezo.
Desta forma o pensamento islâmico desde o século IX ficou marcado com o desinteresse pela consistência, pela análise, pela exploração científica. Não é coincidência, Reilly observa, que as grandes descobertas do mundo árabe ocorreram antes do despertar do poder islâmico. Nem é surpreendente que o desenvolvimento das nações islâmicas esteja bastante atrás das ocidentais.
Infelizmente, a vitória acharita foi, ao que tudo indica, definitiva, porque uma vez afastada a razão, não há mais maneira de resolver disputas além da imposição da força. O Islã tornou-se uma fé inteiramente definida pela prática da vontade: a vontade de Alá. Se um mutazilita ousasse sugerir que o Corão deveria ser examinado pelo prisma da razão, os acharitas o acusariam de haver blasfemado contra a fé, e sua vida estaria em perigo.
O Papa Bento usou de uma estratégia muito interessante quando sugeriu, em seu famoso discurso em Ratisbona, que o Islã, tal como o Cristianismo, deveria sujeitar-se aos princípios da razão. O Santo Padre estava oferecendo um diálogo sério com quaisquer líderes muçulmanos desejosos de defender a causa mutazilita.
O Papa certamente sabe que seria perigoso a qualquer erudito islâmico seguir aquele caminho. Mas no atual estado de coisas, o mundo inteiro está seguindo um caminho perigoso, em direção a uma confrontação entre o Islã e o Ocidente. Seria obviamente melhor evitar um conflito violento. Mas se queremos evitar a violência, devemos ter outros meios de resolver os desentendimentos. Antes de iniciar um diálogo produtivo com o Islã, devemos encontrar interlocutores que tratarão esse diálogo com seriedade – que tratarão a razão com seriedade. O que entendo aqui por julgamento é dizer a verdade clara e inequivocamente, a colocação das coisas, boas e más, à luz que as permite aparecer como realmente são.”
(Philip Lawler, The Most Eye-Opening Book of 2010)