segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Antoine Frédéric Ozanam e as origens do socialismo


“Tratando das origens do socialismo, reunimos sob esta denominação as diversas escolas que a arvoram, e que não poderíamos dividir para com cada uma abrir uma controvérsia particular. Se muitos socialistas não são mais do que discípulos retardatários dos mais culposos erros do paganismo, outros há que, em mais de um ponto, se prendem às tradições cristãs, e cujo erro principal é o de dar novos nomes às antigas virtudes, mudar em preceitos os conselhos evangélicos, e querer fixar na Terra o ideal do Céu. Não desconhecemos a generosidade dessas ilusões, mas vemos o seu perigo. Como todas as doutrinas que perturbaram a paz do mundo, o socialismo só tirou sua força de muitas verdades misturadas com muitos erros. Essa confusão lhe empresta uma feição de novidade que causa admiração nos espíritos simples e fracos: conseguiremos afastar toda a periculosidade de seus ensinamentos quando neles mostrarmos, de um lado, as antigas verdades que, para surgirem, não esperaram o sol do século dezenove, e de outro lado, os erros seculares tantas vezes julgados pelas consciências dos homens e pela experiência dos povos. Já é tempo de proceder à triagem e de retomar o que é nosso, isto é, as velhas e populares idéias de justiça e caridade, e de fraternidade.
Já é tempo de mostrar que podemos advogar a causa dos operários, devotar-nos ao alívio das classes sofredoras, promover a abolição do pauperismo sem nos solidarizarmos com as predições desencadeadas pela tempestade de julho (1848) que ainda suspende sobre nós sombrias nuvens.
O socialismo se propõe como um progresso, mas jamais se tentou, talvez, mais atrevido retorno ao mais remoto passado. Com efeito, nunca estiveram as doutrinas socialistas mais próximas de seu advento do que nas nações teocráticas da antiguidade. Quando a lei indiana faz sair a sociedade já constituída do deus Brama, de sua cabeça os sacerdotes, de seus braços os guerreiros, das coxas os agricultores, e os escravos dos pés, essa lei traduz o sonho de muitos modernos. É a apoteose do Estado, traz a classificação dos homens por um poder superior que julga soberanamente da capacidade e das obras de cada um, e a organização do trabalho sob uma disciplina que não deixa lugar nem à concorrência, nem à miséria, nem a todas as desordens da liberdade pessoal. Essa era a condição em todo o Oriente com suas conseqüências. Destruída a liberdade das pessoas, suprimia-se a propriedade que é ao mesmo tempo obra da liberdade e sua proteção. A legislação da Índia atribuía o solo aos sacerdotes; a da Pérsia dava-o ao Rei; sob vários nomes é sempre o Estado que o possui: os súditos não o detinham senão a título precário.
Os mesmos princípios revestiram-se de outras formas nas primeiras instituições da Grécia, entre os povos dórios, mais fiéis às tradições orientais. Daí a distinção de quatro classes feita pelos espartanos, o princípio igual das terras e sua inalienabilidade, a educação dos filhos arrancada da família, as refeições em comum, e toda a disciplina que fazia dos lacedemônios um falanstério guerreiro.
Quando as doutrinas subvertedoras da família e da propriedade, sempre à espreita de uma brecha oportuna nas portas da sociedade cristã, tiveram a seu serviço circunstâncias tão favoráveis, como a ruína do Império Romano e a invasão dos bárbaros, ou como as dilacerações internas da França desde o tempo dos Pastoureaux até a Jacquerie (...); quando, sustentadas por tanta bravura, tanta perseverança e tantos braços, essas doutrinas subversivas vieram esbarrar invariavelmente contra a solidez da civilização, já não há por que nos amedrontarmos como se estivéssemos diante de um novo perigo. É razoável contar com a consciência e o bom senso de povos que há dezoito séculos resistem a essas tentações.
Podemos contar principalmente com o cristianismo, que nunca deixou de repelir com a mesma firmeza o erro dos socialistas e as paixões egoístas, que contém todas as verdades dos reformadores modernos e nada de suas ilusões, e é a única força capaz de realizar o ideal da fraternidade sem imolar a liberdade, e de procurar para os homens a maior felicidade terrestre sem lhes arrancar o dom sagrado da resignação, o mais seguro remédio de suas dores, e a última palavra de uma vida que tem de acabar.”
(Antoine Frédéric Ozanam, Les Origines du Socialisme, citado no livro de Gustavo Corção, O Século do Nada)

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