“Esse processo começou na Idade Média e atingiu seu pleno florescimento na Reforma com os esforços de Martinho Lutero para remover as influências de filosofia e dogma católicos e voltar ao que ele acreditava ser a pureza original apenas da Escritura. De várias formas, o princípio da
sola Scriptura tornou-se uma premissa essencial da teologia liberal dos séculos dezenove e vinte. Ao buscar a mensagem e a pessoa inadulterada de Jesus, a teologia liberal tratou a Palavra bíblica como um dado histórico a ser lido sem referência às formulações filosóficas e teológicas criadas usando-se a língua grega e as ferramentas filosóficas gregas; foi um retorno a uma espécie de literalismo ignorante de produtos do raciocínio filosófico tais como as doutrinas a respeito da Trindade e da divindade de Cristo.
Essa nova perspectiva teológica foi bastante influenciada pela ascensão das ciências naturais e pelas conquistas da tecnologia, assim como pela kantiana 'auto-limitação da razão' às coisas que podem ser percebidas pelos sentidos. Essas influências, por sua vez, fizeram surgir o entendimento moderno de que verdade e certeza são uma função do que pode ser observado e comprovado ou não pela experiência em laboratório.
A razão humana no período moderno tem sido vista, desde então, como estritamente limitada a buscar entendimentos que se conformem a esses cânones 'científicos' de verdade e certeza. Porque não podem ser respondidas de acordo com tais cânones, questões acerca da existência de Deus ou do sentido da existência humana são descartadas como 'não-científicas ou pré-científicas'. Daí que na era moderna a fé religiosa não é mais vista como uma fonte de conhecimento a respeito dos seres humanos e do mundo; ao contrário, é considerada como um sentimento ou emoção e uma questão de preferência subjetiva ou individual.
De acordo com Bento XVI, tais desenvolvimentos – a separação de fé e razão e a diminuição radical destas faculdades do espírito humano – são a causa principal de graves problemas do mundo de hoje. O projeto inteiro de deselenização, como ele o vê, descansa sobre uma premissa falsa, ou seja, de que a fé cristã pode ou deve ser separada da razão humana como entendida no mundo helenístico. Essa premissa é falsa porque, como Bento afirma, 'o encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não aconteceu por acaso'. Ele cita a visão de São Paulo de um homem grego que chamou Paulo a 'passar à Macedônia e vir em nosso auxílio' (Atos 16:6-10). Bento interpreta essa visão como indicadora da 'intrínseca necessidade de uma reaproximação entre a fé bíblica e a investigação grega.'
Ele nota que os próprios evangelhos foram escritos na língua grega, usando vocabulário e conceitos tirados do meio helenístico. As mesmas influências podem ser encontradas no povo judeu – que vivia há muitas décadas sob domínio helenístico. Apesar de sua opressão, eles também 'encontraram o melhor do pensamento grego em um nível profundo.' Os frutos de tal encontro podem ser vistos na própria Escritura, na chamada literatura sapiencial. Um testemunho ainda mais convincente da influência grega está na tradução conhecida como Septuaginta, que Bento descreve como 'mais do que uma simples (e nesse sentido realmente menos que satisfatória) tradução do texto hebraico: é uma testemunha textual independente e um passo distinto e importante na história da revelação, que proporcionou esse encontro de um modo decisivo para o nascimento e a propagação da Cristandade.'
Para Bento, tudo isso significa que 'as decisões fundamentais tomadas sobre o relacionamento entre a fé e o uso da razão humana são parte da própria fé; são desenvolvimentos de acordo com a natureza da fé mesma.' Além disso, ele diz, não temos necessidade de pensar sobre a razão humana em termos restritos, limitando-a à busca do entendimento somente de fenômenos que podem ser vistos ou experimentados. A auto-limitação da razão fez surgir a 'ditadura das aparências.' Tornou-se 'uma espécie de dogma' a idéia de que não podemos saber nada além da aparência.”
(Scott Hahn,
Covenant and Communion: The Biblical Theology of Pope Benedict XVI)
Prezado Theophilus, Laudetur Dominus!
ResponderExcluirApesar do que alegaram os promotores desta deselenização desde o começo, ela não tem nenhum fundamento teológico. Pois se por um lado eles alegam que deve-se voltar à pureza das Escrituras, por outro as próprias Escrituras não foram produto de um "ditado divino". Elas contém em seu texto, glossas, comentários e complementos dos textos-fonte, e estes são frutos de uma reflexão que se utilizou também de ferramentas intelectuais, sejam as gregas, sejam as judaicas. O que permitiu à Igreja dizer quais textos eram inspirados não foi a sua "pureza", manifestada em algum tipo de homogeneidade, e sim o fato de que mesmo os acréscimos respeitavam os pontos que são essenciais na Lei de Deus e mesmo ao pensamento do autor original.
Eu penso que, no fundo, esta deselenização seja uma tentativa de desligar da mentalidade cristã tudo aquilo que a mantém apoiada sobre o solo firme da racionalidade, pois quando esta base firme é removida, são possíveis todas as loucuras serem ensinadas sob pretextos científicos.
Pax et Salutis