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segunda-feira, 8 de abril de 2019

Cinco Momentos Cruciais na Vida de W. G. Sebald

“Todo autor que aspire a biografar W. G. Sebald deve enfrentar a ficcionalização que o Sebald autor levou a cabo com a vida do Sebald narrador/personagem que aparece em suas obras literárias. Datas de nascimento, de falecimento, seu emprego, a publicação de seus livros e outros acontecimentos certamente são transcendentais na vida empírica de W. G. Sebald, mas não em sua biografia interior e subjetiva, que sem dúvida é mais interessante para seus leitores. No entanto, como se pode distinguir entre fato biográfico e invenção? O próprio Sebald tornou deliberadamente esta distinção uma tarefa difícil, senão impossível: aparentemente seus narradores refletem sua vida real de professor/escritor nascido na Alemanha e residente na Inglaterra, mas seus livros não fazem nenhuma referência a, por exemplo, sua vida familiar com sua esposa e uma filha. O Sebald narrador sempre está sozinho, é o outsider e caminhante por antonomásia; o Sebald autor, não tanto. A seguir apresento uma lista de cinco dos acontecimentos mais importantes na vida de W. G. Sebald, começando por um que tem lugar inclusive antes de seu nascimento. Os primeiros três acontecimentos pertencem diretamente ao âmbito da biografia interior parcialmente inventada do narrador sebaldiano. Os dois últimos – de momentos muito posteriores de sua vida – têm uma validade histórica relacionada com sua própria posição geracional na Alemanha do pós-guerra.
1) A guerra aérea contra a Alemanha
Na noite de 28 de agosto de 1943, 528 aviões aliados bombardeiam a cidade de Nuremberg. Rose Sebald, nascida Egelhofer, se encontra de volta a casa depois de visitar seu marido – à época oficial da Wehrmacht – em Bamberg. Só pode chegar a Fürth, de onde vê Nuremberg em chamas; pouco depois se dá conta de que está grávida. Nascido oito meses depois, em 18 de maio de 1944, Sebald se criou na aldeia de sua mãe, ao pé dos Alpes, no sudoeste da Baviera, perto das fronteiras austríaca e suíça. Aquele lugar bucólico não foi nunca bombardeado, de maneira que Sebald cresceu sem nenhuma noção de destruição. Mas para o narrador de Do natural, no momento em que Rose Sebald se vira para olhar a destruição das instalações onde se celebravam os congressos do partido nazista, cria-se um vínculo pessoal direto do narrador com esta destruição quase bíblica, "como se eu já tivesse visto tudo antes", escreve. Os bombardeios da Alemanha perturbarão sua vida adulta e praticamente toda sua ficção. Ironicamente, Sebald viveu quase trinta anos na costa nordeste da Inglaterra, a pouca distância do lugar de onde os aviões ingleses iniciavam seus ataques aéreos contra a Alemanha.
2) Pais alheios
Em fins de janeiro ou princípios de fevereiro de 1947, Sebald não tem nem três anos quando a família viaja a Memmingen para receber a Georg Sebald, liberado recentemente de um campo de prisioneiros de guerra na França. É um momento arquetípico na vida das famílias alemãs que terá lugar desde o fim da guerra até 1956, quando finalmente são postos em liberdade os últimos prisioneiros alemães de seu confinamento soviético. O pai que regressa, objeto de muitas recordações familiares e de uma grande idealização durante sua ausência, apresenta na realidade uma série de contradições inquietantes a seus filhos: depauperado moral e fisicamente (pesa menos de cinqüenta quilos), mas autoritário e exigente; o usurpador severo em um universo familiar até então encabeçado benevolamente por sua mãe, sua irmã maior Gertrud e seus complacentes avôs maternos, Josef e Theresa Egelhofer. O filho menor, Winfried, nunca perdoará a seu pai. A relação fraturada com Georg Sebald, nome que seu filho compartilha mas que desterrará relegando-o a uma inicial ("W. G." = Winfried Georg), induzirá as decisões mais importantes de sua vida e será um catalisador oculto para sua produção literária.
3) O filósofo natural
O pai "autêntico" ou eleito de Sebald foi seu avô Josef Egelhofer, que serviu de polícia rural na aldeia de Wertach desde princípios do século XX até que se aposentou, nos anos trinta. Homem reconhecidamente sensível, afável e gracioso, não recebeu muita educação formal, mas era inteligente e curioso, sobretudo em relação ao mundo físico que o rodeava. Gertrud Sebald disse que é um Naturphilosoph ou filósofo natural. O Egelhofer aposentado, cuja profissão o havia levado a patrulhar os arredores a pé, levava seu neto a fazer longas caminhadas e lhe dava a conhecer as flores e as ervas, a meteorologia e a geologia das montanhas, mas também os habitantes da aldeia, já que conhecia muito bem suas histórias vitais. É o primeiro e mais querido mentor de Sebald, um papel que se viu reforçado pela ausência de seu genro, Georg, que trabalhava em uma população vizinha e até 1952 voltava a casa só nos fins de semana. Egelhofer morreu em abril de 1956, à noite, durante uma grande tempestade de neve, alguns meses antes de seu neto finalizar a educação primária. Sua morte deixará talvez a marca mais importante dentre todos os acontecimentos da paisagem interior de Sebald. Seu primeiro romance, escrito durante seus estudos universitários mas nunca publicado, gira em torno da longa descrição do funeral e do enterro de seu avô. Mas a presença de Engelhofer também se pode notar nas obras publicadas: no vínculo reverencial entre os narradores jovens de Die Ausgewanderten (em português publicado com o título de Os Emigrantes) e Austerlitz (publicado em português com o mesmo título) e em figuras masculinas de mentores mais velhos e mais sábios como Henry Selwyn, Max Faber ou Jacques Austerlitz, vítimas e sobreviventes melancólicos de uma catástrofe pessoal muito anterior.
4) Uma vida no exterior
A mudança de residência de Friburgo de Brisgóvia (na Alemanha) a Friburgo (na Suíça) em outubro de 1965 marca sua ruptura transcendental, embora involuntária, com a Alemanha e o início de sua emigração, primeiro à Suíça e depois à Inglaterra, onde viverá até sua morte, em 2001. Dita mudança não obedeceu a um plano deliberado para emigrar: o traslado à Friburgo suíça foi motivado por seu desejo de fugir ao entorno rígido e moralmente comprometido do professorado da faculdade de Filologia Alemã da Universidade de Friburgo, onde havia estudado inicialmente. Também lhe deu a oportunidade de estudar sem ter que pagar um aluguel, sem o apoio econômico de seu pai, já que vivia em um andar com sua querida irmã Gertrud e o marido suíço desta, Jean-Paul Aebischer. Durante sua estada em Friburgo, Sebald completa sua licenciatura com menção de nove meses de francês (uma língua que mal tinha estudado antes), trabalhando com um professor vienense que se havia oposto aos nazistas e havia emigrado à Suíça antes da guerra. Aqui começa a conexão de Sebald com as vítimas e os exilados dos nazistas, conexão que continua em relações importantes que estabelece na Inglaterra, onde havia encontrado refúgio grande quantidade de judeus alemães perseguidos. A estada em Friburgo lhe ensinará o que a vida pode oferecer em um país e uma língua estrangeiros quanto à libertação e ao alívio interiores da carga dos crimes de guerra da Alemanha de sua geração. Viver entre não-alemães fez-lhe ganhar consciência daquela carga e ao mesmo tempo tornou-a mais leve. A emigração formava parte do DNA familiar. Nos anos vinte, os três tios e tias maternos de Sebald emigraram da Alemanha aos Estados Unidos e lá permaneceram até sua morte; as duas irmãs de Sebald, Gertrud e Beate, foram morar na Suíça no começo de suas vidas, onde ainda vivem. Mas a emigração também formava parte de sua herança geracional como filho nascido durante o logo depois da guerra, a geração que chegará à maioridade durante os anos sessenta e, muito amiúde, buscará fortuna no exterior.
5) Onde tudo começou
No inverno de 1983, enquanto vivia em Norfolk, na Inglaterra, Sebald recebeu notícias da parte de sua mãe sobre o suicídio de um mestre muito querido da escola primária chamado Armin Müller. Rose lhe mandou recortes de jornal que informavam de sua horripilante morte – o mestre aposentado havia caído sobre os trilhos de trem na periferia de Sonthofen – e graças àqueles recortes Sebald descobriu que Müller, surpreendentemente, havia sido vítima dos nazistas nos anos trinta. Como neto de avôs judeus ou uma quarta parte judeu, no período inicial do regime nazista proibiram-no de ensinar alemão às crianças, muito embora em 1939, paradoxalmente, a Wehrmacht o convocaria aludindo a suas três quartas partes de alemão e serviria à pátria durante seis anos. O descobrimento de Sebald de um exemplo a mais da conspiração do silêncio perpetrada por pais e professores sobre a verdadeira implicação de sua aldeia natal na perseguição nacional-socialista engendra nele emoções contraditórias: raiva porque desde pequeno as figuras de autoridade lhe mentiram, mas também dolo culpável por um mestre querido, já que de repente se dá conta de que nunca havia entendido de todo a autêntica identidade daquele mestre nem a perseguição que havia sofrido no passado. As emoções mescladas são um potente catalisador para sua obra literária e o levam a escrever a história de Paul Bereyter, em Os Emigrantes. Esta história, uma das mais comoventes de Sebald, estabelece o modelo de sua ficção, semidocumental e eticamente comprometida, que se tornará sua assinatura literária."
(Mark M. Anderson, Cinco Momentos Cruciais na Vida de W. G. Sebald)

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quarta-feira, 24 de maio de 2017

A falha do romance brasileiro (segundo Manuel Bandeira e Nelson Ascher)


"Dentre os artigos de Nelson Ascher na Folha de S. Paulo, sempre recordo de “O grande romance brasileiro”, publicado em 11 de outubro de 2004.
Partindo de um suposto encontro com certa escritora, finlandesa ou búlgara, Ascher constrói rara, irônica reflexão sobre o nosso romance.
Meses depois do encontro, em que o articulista expôs à escritora os “esplendores de nosso vernáculo”, esta lhe escreve, pedindo-lhe não “obras historiográficas ou tratados sociológicos”, mas romances que retratassem o Brasil. Ascher envia, então, alguns livros à curiosa escritora: “Machado, Mário, Oswald, Graciliano, Guimarães Rosa e Clarice”.
Passado algum tempo, ele recebe novo e-mail: “Obrigada. Os autores que você me mandou são magníficos e, se tivessem escrito em inglês ou francês, seriam universalmente reconhecidos. Lendo-os com atenção e concentrando-me nas entrelinhas fui capaz de vislumbrar algo da especificidade de seu país. Não me entenda mal: mesmo quem não saiba nada sobre sua terra pode se deliciar com eles. Mas aí é que está o problema, pois, embora eu tenha me deliciado, nem por isso creio saber hoje mais a respeito do Brasil do que antes de lê-los”.
Coloca-se, dessa forma, o problema do romance brasileiro, a sua falha: onde estão as “narrativas que, sem prejuízo da qualidade estética, oferecem um painel amplo e razoavelmente explícito do período histórico e da sociedade em que se ambientam”?
E a escritora insiste: “Quais são os melhores romances brasileiros sobre a era Vargas, a construção de Brasília, o golpe de 64, a ditadura militar e a transição para a democracia? Onde estão as sagas que descrevem a trajetória de diversas gerações de uma família italiana, árabe, japonesa ou judia desde sua chegada a Santos no início do século 20 até os anos 90? E as histórias de ascensão e queda individual cujo pano de fundo sejam as transformações de São Paulo ou do Rio?”.
Ela também observa que não há, no Brasil, “uma única variante local notável de um subgênero tipicamente latino-americano, o romance sobre ditadores como O Outono do Patriarca, de García Márquez, ou O Senhor Presidente, de Miguel Angel Asturias”. E completa, indignada: “Impossível, afinal vocês tiveram o ditador mais interessante de todo o subcontinente: quem são Perón, Trujillo, Pinochet e Castro comparados a Getúlio?”.
A resposta de Ascher expõe, com ironia, uma das nossas fissuras culturais: “O dr. Samuel Johnson disse certa vez a um jovem autor que seu manuscrito era bom e original, mas a parte boa não era original e a parte original não era boa. Pois bem: o Brasil produziu ficção boa e realista, mas a ficção boa não é especialmente realista e a ficção realista…”.
Nelson Ascher, que é poeta, tradutor e ensaísta, reflete um pouco mais sobre a questão e faz interessantes suposições sobre os motivos dessas lacunas: “[…] Talvez o país seja demasiadamente extenso e incompreensível, talvez o material necessário para estudá-lo nem sempre estivesse à mão, talvez os autores se sentissem intimidados pelos mestres europeus e norte-americanos ou se dirigissem a um público que, além de reduzido, conhecia o contexto tão bem quanto eles, talvez achassem o país maçante, repetitivo, imutável”.
O artigo não se esgota aí — e, tenham certeza, é muito mais perspicaz do que o injusto resumo que tentei construir.
Fantasia e imaginação no romance brasileiro
Hoje, passados quase dez anos, o que poderíamos responder às justas cobranças da personagem de Nelson Ascher? É o que me pergunto desde que li e guardei o artigo. E até hoje só penso num autor que talvez pudesse satisfazer a insistente escritora: Érico Veríssimo — e seu O tempo e o Vento.
Mas, como em tantos outros casos, a exceção confirma a regra. Uma só obra é muito pouco para a literatura que tem mais de três séculos.
À parte os nomes que, porventura, estejam me escapando, a pergunta central ainda não tem resposta: que outras razões poderiam existir, além das sugeridas por Ascher, para nossos escritores não produzirem o grande romance brasileiro?
Sete décadas antes desse artigo, Manuel Bandeira, numa crônica publicada no Estado de Minas, no dia 9 de setembro de 1933, tratou do mesmo problema.
Bandeira diferencia “imaginação” de “fantasia”, citando o filólogo e crítico literário João Ribeiro, para quem a “pura imaginação” é “aptidão a reproduzir no espírito as sensações, na ausência das causas exteriores que as provocaram”, enquanto define “fantasia” como a “capacidade de organizar as imagens na unidade de uma obra”.
Sobraria imaginação aos romancistas brasileiros, segundo Bandeira. E eles teriam lá o seu tanto de fantasia, suficiente para “representar uma vida, algumas vidas”. Mas o poeta completa: “Desde, porém, que elas são numerosas e as relações se multiplicam e complicam, falta-nos a força do contraponto para compô-las, e nem mesmo se tentará a obra”.
Nossos bons romancistas, salienta Bandeira, apresentam mais “as qualidades de observação e crítica, de introspecção ou de construção e estilo”, mas com um “trabalho da imaginação pouco sensível”.
Bandeira esclarece: “Sem dúvida, os brasileiros somos bem imaginosos. Mas falta-nos a aptidão de combinar tanta abundância de imagens e, sobretudo, de as exteriorizar artisticamente num entrecho que nos dê a ilusão da vida em toda a sua rica versatilidade”.
Manuel Bandeira, contudo, também não tem certeza sobre os motivos desse defeito, ainda que aposte em alguns: “Será por falha fundamental da capacidade criadora ou simples vício de composição, falta de aplicação ou ausência de estímulo?”.
De minha parte, descarto uma “falha fundamental da capacidade criadora”, pois isso seria nos condenar a um atavismo próprio dos piores naturalistas. Aposto mais no “vício de composição” e na “falta de aplicação” — problemas, aliás, que o minimalismo das últimas décadas só acentuou, desculpando a lacuna com justificativas pretensamente estéticas.
Os questionamentos da escritora de Nelson Ascher talvez tenham sido parcialmente respondidos por Manuel Bandeira. Mas as insistentes cobranças dessa “finlandesa ou búlgara” continuam de pé: onde estão os nossos romances “espessos, cerrados, florestais”? “Não há nenhum”, responde Bandeira, “ainda que péssimo”."

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terça-feira, 8 de novembro de 2016

Vida e obra de Robert Musil

“Sessenta anos depois de sua morte – lembrados em 15 de abril –, Robert Musil continua ganhando em importância; ano a ano, ensaio a ensaio.
Quando o segundo milênio dava seus últimos suspiros a Alemanha fez o que todo mundo fez... Atendendo à necessidade dos registros – que é interessante e polêmica – e explorando o fim do milênio na justificativa de preservar a memória – e aproveitando para armar debates e aquecer as vendas –, a Alemanha também listou suas obras-primas... O resultado? O melhor romance alemão do século XX – na opinião de 33 autores, 33 críticos e 33 germanistas dos mais conhecidos e importantes do país; que votaram, cada um, em três títulos – é O homem sem qualidades (Der Mann ohne Eigenschaften) de Robert Musil.
Setenta e seis romances receberam voto. E o romance de Musil apareceu em primeiro lugar, com uma vantagem confortável sobre o segundo colocado: O processo, de Kafka. Pausa para a curiosidade... O terceiro da lista – e não vou promover contendas, apenas mencionar resultados – foi A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Desculpem, mas não posso me furtar ao questionamento; o Doutor Fausto é muito mais romance, embora tenha aparecido apenas em décimo lugar, depois de Os Budenbrook, inclusive, sétimo colocado, também de Thomas Mann... Em quarto lugar ficou Berlim Alexanderplatz, de Alfred Döblin; o quinto colocado foi O tambor, de Günter Grass; o sexto, Aniversários (Jahrestage), de Uwe Johnson – 2000 páginas inéditas no Brasil.
Mas voltemos a Musil, primeiro na lista e foco desse texto...
A vida
Robert Edler von MUSIL (1880-1942) nasceu em Klagenfurt, na Áustria, e morreu pobre – quase esquecido e dependendo da ajuda de amigos – em Genebra, na Suíça, em plena II Guerra Mundial.
Aos dez anos Musil entrou para a Escola Militar em Eisenstadt, destinado à carreira de oficial. Estudou durante mais de cinco anos em instituições do exército até chegar à Academia Militar de Viena, em 1897. Um ano depois, Musil decidiu largar a carreira de oficial e passou a estudar Engenharia em Brünn, obtendo o diploma da graduação em 1901. Depois de uma temporada em Stuttgart, cursou Filosofia e Psicologia experimental na Universidade de Berlim, doutorando-se em 1908 com tese sobre Ernst Mach (1838-1916), físico e filósofo austríaco. Os estudos de Mach sobre o fenômeno da descontinuidade e da dissociação, assim como suas teses a respeito do “eu condenado” (unrettbares Ich), seriam decisivos na formação de vários escritores vienenses, entre eles Arthur Schnitzler e o próprio Musil.
De 1914 a 1918, Musil participou ativamente da I Guerra Mundial na condição de oficial de Infantaria do exército austríaco. Ao final dos combates chegou a capitão, condecorado com a principal ordem de guerra do moribundo império (Ritterkreuz des Franz-Josephs-Ordens). Só a partir de 1923, e já morando em Berlim, é que Musil passaria a viver exclusivamente de sua condição de escritor.
A ascensão do nazismo, em 1933, obrigou o autor a se mudar para Viena e, mais tarde – depois de se sentir numa ratoeira, conforme ele mesmo chegou a escrever em seu diário –, para Genebra, onde veio a falecer em 15 de abril de 1942.
A arte
A publicação da primeira obra de Musil – O jovem Törless (Die Verwirrungen des Zöglings Törless, 1906) – só foi levada a cabo através do incentivo do crítico berlinense Alfred Kerr. O sucesso posterior, e também a aprovação da crítica, foi imediato. No romance, Musil detém-se – com admirável agudeza psicológica – na consciência de um estudante de internato, às voltas com situações que antecipam – de maneira genial e visionária – o sadismo e a opressão nazistas. O filme baseado no livro, realizado sessenta anos depois da publicação da obra, foi um grande êxito na Alemanha envolvida com a expurgação de um passado tenebroso.
As reuniões, de 1911 – duas novelas – e Três mulheres, de 1924 – três contos esticados –, foram as outras duas obras ficcionais publicadas por Musil antes de O homem sem qualidades. O drama Os entusiastas (Die Schwärmer, 1921) e a comédia Vicente ou A amiga dos homens importantes, de 1923, provaram que a pena de Musil também era afiada no teatro. O espólio literário do autor ainda revelaria várias obras de qualidade, entre elas o conto O melro (Die Amsel).
O homem sem qualidades é a síntese final, tanto da obra quanto da vida de Robert Musil. Todas as obras anteriores do autor são uma espécie de preparação ao Homem sem qualidades, toda sua vida parece ter sido direcionada para a escritura final do romance. Contando apenas o tempo ativo, Musil trabalhou em sua obra-prima durante cerca de 15 anos, de 1927 até o dia da morte. A primeira parte foi publicada em 1930. Logo depois de ter sido lançada a segunda parte – em 1933 –, a obra foi proibida tanto na Alemanha quanto na Áustria. A terceira parte, ainda organizada pelo autor, seria publicada em 1943, na Suíça. A edição de 1952, traria o acréscimo de um quarto volume, organizado por Adolf Frisé e baseado nas notas deixadas pelo autor.
A ação de O homem sem qualidades transcorre na Áustria imperial, dissimulada sob o nome de Kakânia. O romance constitui um vigoroso painel da existência burguesa no início do século XX e antecipa, de certa forma, as crises que a Europa viveria apenas na segunda metade daquele mesmo século. A obra é – em suma – o retrato ficcional apurado de um mundo em decadência.
Elaborado com fortes doses de sátira e humor, O homem sem qualidades é uma bola de neve de ações paralelas, que rola pela montanha do século abaixo, abarcando tempo e espaço, para ao fim engendrar um romance inteiriço, ainda que multiabrangente, pluritemático e panorâmico. Ulrich – o homem sem qualidades – faz três grandes tentativas de se tornar um homem importante. A primeira delas é na condição de oficial, a segunda no papel de engenheiro (vide a carreira do próprio Musil) e a terceira como matemático, exatamente as três profissões dominantes – e mais características – do século XX. Os três ofícios são essencialmente masculinos e revelam o semblante de uma época regida pelo militarismo, pela técnica e pelo cálculo que, juntos, acabaram desmascarando o imenso potencial autodestrutivo da humanidade. O relato acerca da busca “desencantada” de Ulrich lembra a velha busca – ainda sagrada – do Santo Graal.
A compreensão da realidade característica da obra e do pensamento de Musil é rematadamente satírica. A índole “ensaística” do autor arranca máscaras e sua ficção trabalha na confluência dos gêneros. Musil é um escritor “contemplativo”, de “postura clássica”, situado à janela do mundo e atento a seus movimentos. (Tanto que, em várias situações de suas obras, seus personagens aparecem à janela). Ao utilizar vários elementos do ensaio, e inclusive ensaios inteiros no corpo da ficção, além de fazer uso livre do discurso falsamente científico – ainda carregado de poesia – na compleição do romance, Musil dá vida à hibridez de sua narrativa. A frialdade da linguagem, a formalidade da postura do narrador são apenas superficiais. Se à primeira vista o olhar do narrador é marcado pelo intelectualismo – frio e impessoal –, logo se descobre que isso é apenas um meio apolíneo contra o perigo dionisíaco do mundo, e que a indiferença gelada da superfície apenas mascara a paixão ardente do interior.
Adotando uma atitude fundamentalmente irônica diante da sociedade, e decidido a lutar contra a estultice do século – contra “a imensa raça das cabeças medíocres e estúpidas” –, Musil muitas vezes foi compreendido como utopista, ou até místico, por alguns críticos, decididos a dinamitar o vigor de sua obra. O autor que foi tão corrosivo ao representar o mundo em sua realidade distorcida e deformada na figura mítica de uma Kakânia caquética, é transformado assim num sujeito extravagante e pouco afeito à realidade. Um leão sem garras nem dentes...
Já em 1972, Helmut Arntzen – crítico da obra de Musil – dizia que os críticos pareciam fazer gosto em apresentar o autor na condição de animal exótico, místico e de movimentos graciosos. Dessa forma, o escritor combativo e heróico – conforme Musil se compreendia – era transfigurado num metafísico dócil, no homme de lettres que ele sempre renegou, num autor distanciado da realidade, provido de alguns requintes matemáticos na linguagem e de outros tantos talentos psicológicos na análise da alma humana.
A postura “contemplativa” de Musil foi entendida como passiva, a “utopia do ensaísmo” pregada por Ulrich – seu personagem – como uma visão utópica do mundo. Na verdade, Musil fez apenas lutar pela recuperação da atividade de mensurar melhor, quantitativa e qualitativamente, os sentimentos e o “volume espiritual” das relações humanas; sem a ingenuidade do romantismo, mas sem a secura do realismo bruto. De quebra, deu nova fisionomia ao sujeito, nova potência ao “eu”, tornando-o estética e radicalmente consciente, ainda que fazendo-o perambular no âmbito daquilo que um outro crítico – Wolfgang Lange – chamou de “loucura calculada” ou “suspensão calculada da razão”.
A intuição poética de Musil, enriquecida por seu aguçado espírito científico, proporcionou ao autor a capacidade de traçar um vasto panorama ficcional de sua terra e da Europa do século XX. Postado à janela do mundo, Musil examina, em última instância, o valor da inteligência objetiva do homem diante das casualidades mundanas.”
(Marcelo Backes, Um Autor na Janela – A Vida e a Obra de Robert Musil num Instantâneo Panorâmico)

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quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A Idade de Prata da literatura russa


“Se aceitarmos o pensamento de Mukarovski, o maior representante do Círculo Lingüístico de Praga, que põe em destaque a importância do contexto na análise de qualquer texto literário, comprovaremos como o contexto histórico e social influiu e interrompeu a vida – e a obra – dos escritores russos no século XX: Mandelstam morre em um campo de concentração. Outros, como Maiakovski, Yessenin ou Marina Tsvetaeva, se suicidam. Outros são fuzilados como o marido de Ana, Nicolai Gumilev, Boris Kornilov ou Vladimir Narbut.
Nos anos de poder soviético – afirmou Shentalinski – foram detidos cerca de 2.000 escritores e desses 1.500 foram fuzilados e morreram em cárceres e campos de concentração.
Observando esse contexto podemos dizer que o povo russo amava a poesia; nos anos anteriores à Revolução de 1917 ocupavam-se todos os lugares do estádio de Moscou para escutá-la. Na época do regime soviético os versos eram passados de mão em mão em cópias manuscritas ou aprendidos e recitados em reuniões de amigos e dissidentes. Deve-se ter em conta que o comovente poema Réquiem de Anna Akhmatova se conserva porque ela e um grupo de amigos o memorizavam para não deixar rastro escrito que pudesse ter nefastas conseqüências. Em O Canto e a Cinza nos contam como Anna fazia com que sua amiga escritora Lidia Chukovskaia aprendesse poemas do Réquiem para depois queimar o poema. No ano de 1946, passada a época do terror estalinista, quando se permitia a Akhmatova dar alguns recitais, os cidadãos a recebiam de pé, entre ensurdecedores aplausos, porque se sentiam identificados com seus versos.
Consideravam-se "crimes de estado" os versos que não estavam ao serviço da Revolução. Este comportamento repressivo era conseqüência da tese de Lênin de que a literatura, e a arte em geral, tinha que defender as idéias da Revolução proletária. E foi precisamente o poeta Maiakovski, antes de descobrir os horrores da Revolução, quem defendeu com entusiasmo esta postura em seus versos. A chegada de Stalin ao poder radicalizou a situação, com assassinatos, deportações e aniquilação de qualquer sinal de resistência.
Mas como era o ambiente literário russo antes da Revolução?
Essa época, chamada Idade de Prata, será continuadora do período de esplendor da literatura russa, o Romantismo russo, cujo artífice foi Pushkin, a considerada Idade de Ouro. Foram anos de uma rica diversidade de correntes estéticas e literárias e de grande agitação intelectual, cultural e artística. Ressalte-se que a Idade de Prata começa com o simbolismo russo.
O VANGUARDISMO, a revolução literária que antecede a revolução política, apoiará a revolução para depois ser substituído ou eliminado por um realismo socialista. A revolta contra o passado artístico, que supõe a vanguarda, é uma revolta também contra o símbolo político do passado e da opressão representada pelo tzarismo. O vanguardismo russo tem seu centro no futurismo, mas não coincide com o Futurismo italiano nem nasce deste. De fato queriam chamar-se "futurianos" e não futuristas, para que não os confundissem. O futurismo não foi um agrupamento homogêneo; sob o mesmo nome se concentraram grupos diferentes. O mais famoso era o cubofuturista, ao qual pertenciam Khlebnikov e Maiakovski.
Quando se lança o primeiro manifesto futurista A Bofetada no Gosto do Público em 1912 estão em marcha outros movimentos literários: acmeísmo, clarismo, imaginismo...
ACMEÍSMO. Corrente literária russa que surgiu em 1911, durante o chamado Século de Prata da literatura russa, em resposta ao simbolismo. Ao contrário do simbolismo, o acmeísmo se empenhou em substituir o hermetismo, a polissemia e a ambigüidade complicada e o misticismo daquele com a clareza na linguagem do retratado. Surge junto com o futurismo, o que levou a que parecessem anacrônicos.
No outono de 1912 na casa de Gumilev seis poetas jovens decidiram criar uma nova corrente poética, a princípio deram dois nomes a este movimento: acmeísmo – da palavra grega acme – que significa grau máximo de algo, florescimento; e adamismo, visão do mundo viril, clara e firme. Mas este segundo termo caiu em desuso. Só seis poetas se reconheceram como acmeístas: Gumilev, Gorodetsky, Akhmatova, Mandelstam, Narbut e Zenkevitch.
Em janeiro de 1913 no primeiro número da revista Apollon apareceram artigos de Gorodetsky e Gumilev, que se tornaram verdadeiros manifestos do acmeísmo. Os acmeístas renunciam a conhecer a essência oculta das coisas, ao contrário dos simbolistas, falam do mundo concreto e real, ao alcance da experiência humana imediata. Desaparece o romantismo místico dos simbolistas em busca de maior realismo. Rejeitam a vaguidade e nebulosidade do simbolismo em favor de maior clareza, lógica e concreção, sem esquecer que o símbolo é necessário na poesia. A beleza não é um capricho de um semideus,/ mas o olho implacável de um simples carpinteiro (Mandelstam). Os acmeístas se consideravam artesãos da palavra, por este motivo chamavam suas reuniões Oficina dos Poetas.
Nas reuniões da Oficina dos Poetas cada um lia seus poemas. À leitura dos poemas seguia-se sua discussão. Gumilev antes disso exigia "propostas subordinadas", como gostava de expressar, quer dizer, não reclamações nem afirmações gratuitas, nem que uma coisa fosse boa ou má, mas explicações que argumentassem por que era boa ou má. O próprio Gumilev em geral falava no começo, falava largamente, e sua análise era detalhada.
Todos os poetas da época iam ao bar O Cachorro Vagabundo. Akhmatova dedicou a esse lugar dois poemas: "Todos aqui estamos ébrios, perdidos" e "Sim, eu amava aqueles encontros noturnos"; também aparece em seu "Poema sem herói". Os encontros eram realmente noturnos: chegavam ao Cachorro Vagabundo depois do teatro, depois de alguma festa noturna ou disputa, e partiam quase ao amanhecer.
O Cachorro Vagabundo era freqüentado por visitantes estrangeiros célebres. A esse café vinham todos os poetas de Petersburgo: simbolistas, acmeístas, futuristas, estes últimos todavia divididos em "cubofuturistas", com Maiakovski à frente com sua jaqueta amarela, e Khlebnikov, e os seguidores de Igor Sevirianin. Khlebnikov já então era todo um mistério. Sentava-se em silêncio, inclinando a cabeça, sem perceber ninguém."

http://amarandaalvea.wordpress.com