segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Como será o Papado depois de Francisco?


“Nos próximos dias fará cinco anos a abdicação do Papa Bento XVI, um dos fatos mais graves e lamentáveis na história contemporânea da Igreja. Mal foi anunciada a renúncia, as usinas de progressismo começaram a propalar por todo lugar que o gesto de Bento era um ‘gesto revolucionário’ (entre os que utilizaram esta expressão estava o então Arcebispo de Buenos Aires que, contra toda previsão, seria o encarregado de substituir o papa demitente).
Em que consistia o ‘revolucionário’ do gesto? Em que Bento, finalmente, havia compreendido que representava o último resíduo do papado absolutista e ‘monárquico’ e com sua renúncia abria a porta aos novos ventos da história: já não mais um papa soberano absoluto cujas decisões eram lei suprema e inamovível, mas um Papado aberto à colegialidade que outorgaria ao Colégio Apostólico seu até agora negado papel no goveno da Igreja. De fato, os gestos iniciais do novo papa mostravam claramente esta mudança de rumo: Francisco, no dia de sua eleição, em sua primeira apresentação ao mundo, chamou-se a si mesmo ‘bispo de Roma’ e recordou, com a ajuda de Santo Inácio de Antioquia, que o bispo de Roma ‘preside na caridade’ às outras igrejas, obviando, chamativamente, que o Primado do Romano Pontífice não é só de caridade mas também de jurisdição e de governo como foi definido dogmaticamente no Concílio Vaticano I.
As já mencionadas usinas do progressismo se fartaram de trombetear sobre o ‘bispo de Roma’, a ‘colegialidade’ (nebulosa idéia jamais definida com precisão), o final irreversível do ‘Papado monárquico’ (o jesuíta argentino Ignacio Pérez del Viso publicou em um dos jornais de maior circulação da Argentina um artigo com esse ou parecido título), aclamou-se o fim do ‘autoritarismo romano’ fonte de tantos males e anunciou-se com grande júbilo a venturosa ‘primavera da Igreja’ sob a suave condução colegiada do Papa Francisco. Em definitivo, o que vinham a dizer os fautores do progressismo era que o único bem resgatável de Bento XVI – cujo Pontificado foi alvo impiedoso de toda sorte de ataques – havia sido sua renúncia. Muitos afirmaram isto recorrendo aos eufemismos mais variados e hipócritas; outros o manifestaram com todas as letras.
Por certo, as coisas não ocorreram exatamente da maneira como previa e anunciava a narrativa progressista. Em primeiro lugar, poucos papas como Francisco exerceram um poder tão absoluto, tão sem fissuras e até, segundo alguns observadores, despótico. De fato, desde sua ascensão ao Papado ocupou, de modo exclusivo, o cenário eclesial relegando por completo a um distante segundo plano seus mais fiéis colaboradores e homens de confiança. A anunciada colegialidade, se temos de ser sinceros, não se vê em canto nenhum; pelo contrário, a mais mínima dissidência é imediatamente eliminada; os poucos bispos que se animaram a formular algum protesto crítico foram, no melhor dos casos, desprezados, quando não afastados de suas funções ou dioceses. Sacerdotes e leigos que expressaram alguma desconformidade a respeito de questões doutrinárias pouco claras conheceram a demissão e a perda de suas cátedras ou postos de trabalho.
Porém, em contraste com este férreo modo de exercer a autoridade, Francisco tem se dedicado a colocar as bases do que no futuro, quando ele já não estiver, pode chegar a ser, nada mais e nada menos, que a demolição do Papado. Com efeito, já desde Evangelii gaudium se fala de dar às Conferências Episcopais o poder de definir questões doutrinárias; o Motu Proprio Magnum Principium outorga a essas mesmas Conferências uma inusitada faculdade na tradução dos textos litúrgicos com evidente míngua do papel da Santa Sé; em numerosos discursos, Francisco propôs o modelo de uma ‘igreja sinodal’ concebida como uma pirâmide invertida na qual o Magistério está embaixo e o sensuum fidelium, reinterpretado à luz da chamada ‘teologia do povo’, a coroa por cima. Todas estas coisas são, de fato, letra morta porque o feroz centralismo que impôs o Papa Bergoglio as torna impossíveis. Mas são as bombas-relógios que, a seu tempo, estarão fazendo voar pelos ares a verdadeira e autêntica soberania universal do Romano Pontífice sobre toda a Igreja.
A que ponto temos chegado. Por isso torna-se inevitável experimentar uma séria preocupação pelo futuro do Papado. Como será o papa que suceda a Francisco? Voltará sobre os passos deste e restabelecerá pelo menos o decoro da figura papal tão banalizada nestes dias? Que fará a respeito de Amoris laetitia e de suas gravíssimas consequências doutrinárias e pastorais? Que acontecerá com a legião de bispos nomeados por Francisco e que são todos de sua feitura? Haverá propriamente um magistério papal claro e inequívoco nos assuntos essenciais ou se continuará ou ainda se aprofundará este estilo ‘magisterial’ difuso e confuso imposto pelo atual Pontífice? Estas e muitas outras perguntas similares se impõem pela força dos mesmos fatos que transcorrem ante nossos olhos.
Por certo a resposta a todas estas interrogações nos dá o Senhor: Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam; et portae inferi non praevalebunt adversum eam (Mateus, 16, 18). O firme non praevalebunt de Cristo é a fonte de nossa esperança e de nossa certeza de que ao final o triunfo será do Senhor. Mas também sabemos que não nos faltarão tribulações e embora nos tenha sido revelado que essas tribulações se encurtarão não podemos escapar às angústias e inquietudes de nosso coração. Somos homens viajores e o próprio deste estado é a angústia de expectativa sustentada pela esperança.
Mas também é uma exigência deste estado viajor o combate espiritual: militia est vita hominis super terram (Jó, 7, 1). Significa que devemos travar batalha diante do avanço do mal; e a respeito do tema que nos ocupa estimo que é necessário prover-se de duas armas. A primeira, defender sem receios a verdade que a Fé ensina sobre a Igreja e o Papado. O primado de Pedro se funda na Sagrada Escritura, na Tradição da Igreja e no Magistério infalível. É uma verdade fundamental sustentada pelos Padres, pelos teólogos escolásticos e pacificamente aceita por todos os doutores e mestres que, para além das legítimas diferenças de escolas e de estilos, permaneceram fiéis aos ensinamentos de Cristo e da Igreja.
Contudo, os piores cismas e as máximas heresias têm negado esta verdade sublime. Por isso o Magistério a tem defendido sem concessões. A Constituição Dogmática Pastor aeternus do Concílio Vaticano I, assinada em 18 de julho de 1870, resume e sintetiza a doutrina do Primado de Pedro e de seus sucessores; não foi, em absoluto, como tem pretendido certa crítica malintencionada ou infundada, a imposição de um poderoso grupo de pais conciliares ferrenhamente ‘centralistas’ movido, inclusive, por interesses políticos. De nenhuma maneira: a Constitução não faz mais que recolher em seus fundamentos bíblicos, históricos, teológicos e magisteriais, uma doutrina aceita desde sempre mas formulada com singular firmeza precisamente em um tempo em que essa doutrina estava sob o ataque dos inimigos internos e externos. Assim o reconhece expressamente o texto da Constituição:
E como as portas do inferno se insurgem de todas as partes de dia para dia com crescente ódio contra a Igreja divinamente estabelecida, a fim de fazê-la ruir, se pudessem, Nós julgamos necessário para a guarda, para a incolumidade e para o aumento da grei católica, após a aprovação do Concílio, propor a crença dos fiéis a doutrina sobre a instituição, a perpetuidade e a natureza do santo primado Apostólico, no qual reside a força e a solidez de toda a Igreja, segundo a fé antiga e constante da Igreja universal, proscrevendo e condenando os erros contrários, tão perniciosos à grei do Senhor.
Não será ocioso recordar a firme e categórica definição dogmática a respeito do Primado contida no cânon da Constituição:
Se, pois, alguém disser que o Apóstolo S. Pedro não foi constituído por Jesus Cristo príncipe de todos os Apóstolos e chefe visível de toda a Igreja militante; ou disser que ele não recebeu direta e imediatamente do mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo o primado de verdadeira e própria jurisdição, mas apenas o primado de honra, seja excomungado.
Recordemos que se trata de um dogma de nossa fé. No entanto, a partir do Concílio Vaticano II esta doutrina tem sido, direta ou indiretamente, questionada ou, pelo menos, reinterpretada. De fato, nenhum texto conciliar põe em dúvida o Primado; pelo contrário, a Constituição Dogmática Lumen Gentium ratifica plena e expressamente a doutrina do Vaticano I. O problema tem consistido na introdução, da parte do Vaticano II, da questão da chamada ‘colegialidade’, termo nunca definido com propriedade com o qual se fazia referência à doutrina acerca dos bispos que junto com o Papa governam a Igreja. É certo que o Vaticano I havia deixado sem tratar este vital ponto; mas não é menos certo que o Vaticano II não foi além de cunhar o termo colegialidade sem defini-lo e abrindo a porta a multidão de incertezas e equívocos. Esta colegialidade tem sido, de fato, uma fonte de constantes equívocos que nos levou a esta ‘Igreja sinodal’ mais próxima do protestantismo que da Fé Católica. Renovar e afiançar esta doutrina é, portanto, nossa primeira arma.
A segunda arma é renovar o amor ao Papa como sinal distintivo da identidade católica. Como dizia Dom Bosco, três amores definem essa identidade: o amor a Jesus Sacramentado, o amor à Santíssima Virgem e o amor ao Romano Pontífice. Mas é possível amar sempre ao Papa e, em todo caso, que sentido tem esse amor? É próprio de si que o amor ao Papa não se identifica exatamente com o maior ou menor afeto que possamos professar pela figura da pessoa que ocupa, acidentalmente, a cadeira de Pedro. Se fosse assim nem sempre seria possível amar ao Papa. Com efeito, ao longo da história sentaram-se na cadeira petrina homens de toda classe e condição: grandes doutores e sábios e homens de limitado intelecto, membros de nobres famílias e filhos de camponeses humildes, grandes santos e pecadores abomináveis, mártires que derramaram seu sague e pusilânimes que negaram Cristo. Toda esta multicolorida sucessão de personagens díspares responde, sem dúvida, à admirável pedagogia de Deus que podemos definir nestes termos: Deus quer que sua Onipotência brilhe na impotência dos homens; assim fica claramente manifesto que é Deus quem rege a Sua Igreja e a conserva apesar, muitas vezes, dos homens. No entanto, é também sua manifesta vontade que não quis prescindir destes homens.
Então se exige que amemos esses homens? Não exatamente: o que se nos exige é amar o mistério insondável de Cristo que habita neles além e por cima de suas qualidades pessoais. Neste homem concreto, neste Papa, se realiza o mistério da união de Cristo com sua Igreja e esplende visivelmente a invisível Cabeça que a rege e governa. O que amamos no Papa é a grandeza do Papado que se realiza em cada um daqueles que ao longo dos séculos Deus convocou para ser seus vigários na terra.
Não se trata, portanto, de afeto mas de amor. Que este amor seja a força que nos leve a resistir e a esperar nesta hora de tribulação da Esposa de Cristo.”
(Mario Caponnetto, ¿Cómo será el Papado después de Francisco?)

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