quarta-feira, 1 de junho de 2016

Uma sociedade de pessoas por si incomunicáveis só é possível em nível sobrenatural

“O subjetivismo moderno é o fruto abortado de um cristianismo corrompido. A boa nova, anunciada por Cristo, é a da Salvação individual. O Verbo não se encarnou para salvar povos, sociedades, raças, civilizações e humanidade, mas para salvar as almas radicalmente pessoais, encarnadas em corpos que ressuscitarão no último dia. I and my God dizia o Cardeal Newman, e nós diríamos que essa divisa condensa e exprime a essência do cristianismo, mas exprime-a no nível do sobrenatural, segundo uma palavra de Pascal: "Derramei por ti tal gota de sangue", e segundo o mistério da predestinação onde se encontram a total liberdade da ação divina, pela qual os eleitos chegam à bem-aventurança, e a inteira liberdade do homem. A graça, princípio radical de operação propriamente divina no homem, penetra até o centro mesmo da pessoa incomunicável que é sua sede (actimes sunt suppositorum) sem constranger a liberdade, e até, ao contrário, conferindo-lhe seu caráter livre, "porque Deus opera em cada espécie de ser segundo a natureza própria da espécie", de modo que a ação divina é verdadeiramente da própria pessoa:
"É preciso que o homem chegue ao fim último por suas própria operações, per proprias operationes", diz Santo Tomás. E para que a pessoa seja, ela mesma, causa eficiente (ipsa efficiens), é preciso que ela seja renovada, regenerada, disposta por Deus a atos sobrenaturais. O divino entra assim na própria fonte de todas as nossas atividades, no coração de nossa pessoa pelo divino sobre-elevada. Pode-se pois afirmar que o cristianismo é a religião de um Deus que se revela à pessoa, como tal.
Essa é a razão pela qual uma sociedade de pessoas, por si incomunicáveis, é possível mas somente em nível sobrenatural: penetrando até o centro mais íntimo de cada pessoa, e impregnando-a de sua graça, Deus as chama, todas as que ele elegeu, à participação de sua vida divina. Gozam todas de um mesmo bem comum sobrenatural que cada uma reencontra presente em cada uma das outras, naquilo que as constitui propriamente. Compreende-se assim o alcance dos preceitos evangélicos: "Amarás o Senhor teu Deus; e o próximo como a ti mesmo", sendo o segundo semelhante ao primeiro: cada pessoa que ama Deus com amor sobrenatural coincide com seus próprios alicerces e aí descobre a presença de Deus, e então se ama a si mesma com um amor que nada tem de egoísmo e que o próprio Deus move em direção ao próximo, onde está presente de fato ou em esperança; essa pessoa ama então a pessoa do outro como ama sua própria, ambas na sobre-elevação do amor divino. E por aí se vê que, para amar o próximo com amor sobrenatural, único capaz de atingir o próximo como tal, e de quebrar por cima a incomunicabilidade da pessoa, é preciso primeiro amar Deus sobrenaturalmente. O amor do próximo passa sempre pela cabeça do Corpo Místico de Cristo e não seria possível sem essa cabeça. Entrevemos aqui a razão pela qual a Igreja exige uma autoridade suprema que garanta a efusão da graça de Deus em seus membros, e que seja a indefectível guardiã da doutrina.
Uma sociedade "personalista e comunitária" só é possível na altura do sobrenatural. O Reino de Deus não é deste mundo, ainda que esteja no mundo de modo incoativo. A secularização dos conceitos fundamentais sobre os quais está fundado, secularização que não para de se acelerar desde a Reforma, a Revolução e a "Mutação" da Igreja desencadeada pelo Vaticano II, é o empreendimento de destruição das sociedades naturais (e da política natural que lhe corresponde) mais violento que a humanidade pode conhecer: esse empreendimento, em nome da liberdade e da igualdade, dissocia radicalmente as pessoas incomunicáveis que agrupa e amontoa. Por via de conseqüência surge um novo tipo de estado que desempenha o papel da divindade desaparecida e que socializa, graças a um aparelho coercitivo totalitário, ou de tendência totalitária, as condutas pessoais. Não é de admirar que esse tipo de estado tome o nome de Estado-Providência: ele se substitui a Cristo, fonte de todas as graças. E é por isso que o bispo Schmitt, de Metz, um dos corifeus do "personalismo comunitário" proclama logicamente que "a socialização é uma graça".”
(Marcel de Corte, Sartre, Filósofo da Contestação)

http://permanencia.org.br