quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

As heróicas portuguesas de Diu

““Não permita Deus” - exclamou Isabel da Veiga para o marido, Manuel de Vasconcelos - “que eu fuja para um lugar seguro deixando-te em perigo!”
Era no ano de 1538. Uma armada turca, vinda do Mar Vermelho, bordejava ao largo da fortaleza de Diu na península de Catiavar, onde uma pequena guarnição de portugueses se mantinha vigilante contra as forças esmagadoras comandadas pelo terrível governador do Cairo, Solimão Basha, de oitenta anos de idade, feio como o pecado, gordo como um hipopótamo e cruel como um tigre.
As fortalezas sitiadas não eram lugar para mulheres. Isabel era jovem e bonita. Havia sempre vagas para mulheres assim num harém turco e o marido certamente lamentava ter trazido a família para viver em Diu, embora a vida ali fosse barata e o clima razoável. Pelo menos Goa vivia em paz e o seu sogro usufruía de uma posição de destaque como magistrado da alfândega. Isabel devia ir juntar-se aos pais em Goa até que passasse o perigo. Por isso, quando o capitão da fortaleza se preparava para enviar um barco ao outro lado do Golfo levando as cartas para o vice-rei, pareceu uma oportunidade que não se devia perder antes que chegasse a monção e impedisse a navegação.
Mas Isabel disse não, não e não! Se por qualquer razão o marido não estava satisfeito com ela, que lho dissesse francamente, que ela procuraria emendar-se. Mas se a afastasse de si num momento daqueles, nunca mais ela teria um momento de sossego! Ao lado dele, nada a assustava, mas se a mandasse embora dali, tudo seriam dores e consumições! Tinha de ficar, quanto mais não fosse para o tratar se ficasse ferido. E se acontecesse o pior e o matassem, ela preferiria morrer a viver sem ele. E a sua filhinha? - lembrou ele. Pois que fosse ela – exclamou a mãe. A criança não podia ficar exposta a qualquer perigo! Devia ir para os avós em Goa. Mas o lugar de uma esposa era junto do marido.
Isabel insistiu, chorou, soluçou e argumentou até ele lhe fazer a vontade. A pequenita foi enviada para Goa e a mãe ficou em Diu.
O momento era crítico. Solimão Basha, exultante pela recente conquista de Aden, chegara com navios, cavalos, infantaria e toda a famosa artilharia turca para atacar estrondosamente as muralhas de Diu, que se esboroavam sob a sua ação. A disparidade do número era considerável. Os turcos acorriam aos milhares, enquanto os portugueses, comandados pelo heróico capitão Antônio da Silveira, não passavam de 600 homens.
Isabel da Veiga olhava em volta e via os homens fazendo prodígios para estarem em toda parte ao mesmo tempo. O canhão do inimigo abria enormes rombos na muralha. Para um lado e para o outro acorriam os defensores a juntar material para tapar as brechas, mas logo se escancarava outra fenda enquanto cada um ia e vinha. “É nisto que eu posso ajudar”, pensou Isabel, e foi buscar a sua velha amiga Ana Fernandes, mulher do cirurgião Fernão Lourenço.
Ajudar? Claro que podiam, respondeu Ana. Enquanto as mulheres ali estivessem para ir buscar e acarretar, os homens não teriam necessidade de abandonar os seus postos.
Todas acorreram, novas e velhas, com baldes e cestas à cabeça, carregando madeira, pedra e cascalho, e tapando os buracos mal eles surgiam. Infatigáveis e intrépidas, iam e vinham enquanto o canhão troava e os mísseis se estilhaçavam em volta.
Isabel da Veiga e Ana Fernandes eram as guias e organizadoras deste improvisado corpo de mulheres, cuja coragem constituía para os homens uma fonte de inspiração. Valente e alegre, a jovem Isabel era a alma do empreendimento. Para todas tinha sempre uma palavra alegre – diz Lopo de Sousa Coutinho, testemunha que registrou estes fatos – nem o mais rude dos soldados sonhava sequer em tomar com ela qualquer liberdade; nem na sua presença poderia um homem albergar um mau pensamento.
Ana Fernandes, mais velha e menos viva, mostrava-se igualmente dedicada. Como era mulher de um cirurgião, conhecia alguma coisa dos primeiros cuidados a prestar aos feridos. Já em sua casa preparara tudo para tratar os ferimentos: ligaduras, unguentos e bálsamos, que ela própria aplicava enquanto as suas ajudantes batiam claras de ovos, que nesse tempo se empregavam para suturar as feridas. Ao mesmo tempo, ia alimentando os guerreiros com bons petiscos provenientes da sua cozinha.
Nem de noite descansava. Apoiada a um bordão, porque as pernas eram velhas e rígidas, lá ia tropeçando na escuridão pelas rudes veredas que ladeavam a muralha. Quando menos se esperava, surgia ao lado deles, e nem a mais feroz bateria era capaz de a fazer recuar. Os covardes ficavam envergonhados pelas suas palavras enérgicas e receavam mais o desprezo desta mulher do que o do seu capitão.
Não tardou que todas as mulheres do forte seguissem o exemplo de Ana e Isabel. Algumas chegavam a vestir a roupa dos maridos e a combater como homens, mas a maior parte, ao que parece, ainda que entregue a pesado trabalho manual, não esquecia os mais suaves deveres femininos. E todos os momentos livres, quando os havia, eram passados na igreja ou em piedoso cortejo para cair de joelhos diante do altar.
A serenidade geral estava acima de todo elogio. Sabemos de uma viúva, Bárbara Fernandes (não confundir com a Ana Fernandes atrás citada), cujo filho mais novo, um rapaz de dezoito anos, lhe morreu nos braços, e o mais velho foi morto no dia seguinte sobre a muralha. Aquela mãe não chorou nem se lamentou, continuando simplesmente a trabalhar durante todo o dia, até que as abençoadas sombras da noite viessem permitir-lhe chorar sem que a vissem.
O cerco prosseguiu sem descanso, enquanto lá fora a monção soprava violentamente. Todos os dias tombavam homens. As mulheres que a seu lado trabalhavam eram freqüentemente feridas, mas nunca mostraram sinais de pânico.
A vida continuava entre pedras e ruínas. O capitão proibira que se passasse através das brechas das muralhas, não fosse o inimigo descobrir-lhes o acesso, mas Francisco do Couto diz que as mulheres não respeitavam a proibição. Aonde queriam ir iam mesmo. Havia uma velha muito gorda, mulher do barbeiro do capitão, que subia e descia constantemente pelo cascalho, de tamancos caseiros nos pés - “e o mesmo faziam todas as mulheres da fortaleza” - acrescenta este cronista.
Chegou finalmente um dia em que só restavam quarenta homens em estado de pegar em armas. As munições achavam-se esgotadas, os alimentos frescos escasseavam e o escorbuto ia-se desenvolvendo. Toda a pólvora que restava foi dividida e distribuída em partes iguais por trinta panelas. Envergando os seus melhores fatos e encorajando-se uns aos outros com palavras animosas, esperaram pela morte no seu posto.
O tempo passou-se, e os turcos sem aparecer. O silêncio tornava-se opressivo. Solimão recebera notícias de que o vice-rei vinha de Goa com toda a frota da Índia para acudir ao cerco de Diu. Desanimado pela prolongada resistência de um simples punhado de homens, o capitão turco não estava disposto a enfrentar reforços. Pela calada da noite, escapuliu-se com a sua armada para o Mar Vermelho. Estava salva Diu e a fortaleza foi reconstruída!
Mas poucos anos durou a paz. O rei de Cambaia, que, em 1535, tivera o gosto de ceder a península de Diu em troco da proteção portuguesa contra os invasores patanes, ao ver afastada a ameaça, ressentiu-se da presença de uma potência estrangeira que fazia sombra aos seus domínios.
Esse sentimento foi encorajado pelo famoso renegado levantino Coja Sofar, um dos maiores comandantes militares do Médio Oriente, o qual tinha acumulado terras e gozava dos favores da corte cambaiana. Foi ele que impeliu o rei a chamar os turcos e a pôr o primeiro cerco a Diu. Perante o fracasso, Coja Sofar passou os sete anos seguintes a preparar armas e a recrutar homens de todas as nações guerreiras que tinha à mão.
O segundo cerco de Diu durou de abril a novembro de 1546 e muitas das cenas atrás descritas se repetiram. É provável que ali se encontrassem algumas das mesmas mulheres, as quais desenvolveram idêntica ação. Sabemos que viviam nessa altura em Diu muitos casais. Todavia, a semelhança de nomes faz confusão e a nós mesmos perguntamos, por exemplo, quantas Isabéis lá havia nos dois cercos.
Desta vez, falam-nos de uma Isabel Madeira, que, como a velha Bárbara Fernandes, era mulher de um médico. Pelo que dizem, era uma zé-ninguém, de constituição delicada, e de mais a mais mãe de quatro filhos. Tal como Bárbara, enfrentou o sacrifício supremo quando o seu marido adorado morreu em combate. Com igual coragem, refreou quaisquer lamentações públicas e ainda consolava as amigas que vinham confortá-la. Assistiu ao funeral do marido sem verter uma lágrima, após o que regressou à muralha a ajudar a enterrar os outros mortos - “um grande exemplo de força de alma”, comenta o cronista.
Ainda nos falam de outra Isabel – a formidável Isabel Fernandes – espírito afim, ao que parece, de Ana Fernandes no cerco de 1538. Esta Isabel foi a primeira a abater um turco com uma pancada na cabeça, quando, a coberto da escuridão noturna, ele trepava pela muralha no ponto em que ela se achava sempre na linha de fogo.
Com suas próprias mãos ajudou a reparar as brechas, encorajando os homens com palavras estimulantes; tratava-lhes as feridas, acarinhava-os como uma mãe, e passou à história como “A Velha de Diu”.
Uma mulher de grande coragem sem dúvida nenhuma, mas talvez com seu quê de turbulento. Diz-se ter sido chefe dos militantes que, à chegada do filho do governador com escassos reforços, induziram o capitão Mascarenhas, contra o seu próprio parecer, a dirigir uma sortida até as linhas inimigas.
O capitão, homem de grande prudência e experiência, e D. Francisco de Meneses, cuja coragem e reputação cavaleirosa se achavam acima de toda a dúvida, desprezaram a intervenção feminina. Era uma vergonha, disse D. Francisco, dar ouvidos a mulheres quando estavam homens presentes! Observação ingrata, talvez, considerando os seus serviços presentes e passados, mas as circunstâncias deram-lhe razão. Os temperamentos fogosos faziam as coisas a seu modo. Realizou-se a sortida, que resultou num desastre com a morte de muitos homens preciosos, incluindo o próprio D. Francisco. As ordens do governador determinavam que a guarnição se mantivesse dentro das muralhas até que ele chegasse com toda a frota da Índia. Isso deu-se algumas semanas depois, quando o cerco tinha sido levantado e estava ganha a grande batalha de Diu.
Seria interessante conhecer-se alguma coisa a respeito das esposas e mães de Diu no período de após-guerra, mas a verdade é que o fulminante discurso de D. Francisco constitui a última coisa que sabemos acerca dela.
Com uma brilhante exceção.
Em 1569, doze anos depois do segundo cerco de Diu, vamos encontrar a valente “Velha de Diu” ainda cheia de vida, agora em Goa, donde escreve uma carta à rainha Catarina.
Diz-lhe ela que sobreviveu a todos os seus dezoito filhos com exceção de um deles, que recomenda ao favor real juntamente com os seus netinhos.
Caseira e prática como sempre, preparou e enviou à sua soberana “uma botija com cravos-da-índia, que são bons no tempo frio daí.”
E assina:
“Isabel Fernandes, a Velha de Diu.””
(Elaine Sanceau, Mulheres Portuguesas no Ultramar)