quinta-feira, 4 de junho de 2020

A abolição do senso comum


"Um dos traços mais assustadores de nossa época é a abolição do senso comum. Aquela fábula do rei desnudo, na qual um menino intrépido se atrevia a dizer o que todos calavam, alcançou hoje seu paroxismo; só que o desenlace dessa fábula seria hoje trágico, pois o rei de imediato privaria do pátrio poder os pais desse menino, que entregaria a um casalzinho desagradável, para que o "reeducasse".
O desprestígio do senso comum não é um fenômeno recente. Todos os sistemas filosóficos prometeicos que quiseram negar a natureza das coisas se preocuparam com anatemizar o senso comum. Assim, por exemplo, Hegel (o Antiaristóteles por excelência) arremete no prólogo de sua Fenomenologia do espírito contra 'o senso comum e a imediata revelação da divindade, que não se preocupam com cultivar-se com a filosofia’ e que são ‘a grosseria sem forma nem gosto’. Resulta, na verdade, muito revelador que Hegel vitupere na mesma frase a Revelação divina e o senso comum humano; prova inequívoca de que sabe misteriosamente – como só sabem os que crêem e tremem – que ambos se amamentam da mesma luz.
E é que, com efeito, o senso comum não é um amontoamento informe de opiniões casmurras ou tópicas sobre isto, isso e aquilo. O senso comum é o juízo são que permite o conhecimento da verdade das coisas; e é um sentido que tem toda pessoa, com independência de que seja crente ou incrédula, se não foi ofuscada por visões culturais ou ideológicas deformantes. Toda a história da filosofia moderna tem sido um combate – às vezes soterrado, às vezes furioso – contra o senso comum e contra os filósofos que o sustentaram, começando por Aristóteles. E em nossa época esse combate se transladou à política, que nos impõe construções abstratas e utopias mórbidas com escassa ou nula ancoragem na ordem real das coisas. As ideologias modernas conseguiram instaurar deste modo uma nova barbárie (como sempre ocorre quando se perde contato com a realidade), só que desta vez se trata de uma barbárie mais incitante e apetitosa, porque nos faz crer que somos soberanos.
Não pensemos bobalhonamente que esta abolição do senso comum propõe em troca diversas ‘versões relativistas’ da realidade. Pelo contrário, embora ofereçam temperos variados, o certo é que as ideologias em luta oferecem as mesmas definições dogmáticas que, por suposto, negam o senso comum e postulam a subversão da ordem real das coisas. Suas premissas não podem ser discutidas; e os que se atrevem a fazê-lo são de imediato marcados, desprestigiados, estigmatizados, até mesmo civilmente eliminados. E, entretanto, as definições dogmáticas contrárias à ordem real das coisas são proclamadas por ‘iluminados’ de esquerdas e direitas com todos os meios propagandísticos postos a seu serviço, até a abolição completa do senso comum, até a transformação dos homens em bestas escravizadas que, além disso, se crêem grotescamente soberanas.
Nestes últimos momentos assistimos à última ofensiva contra o senso comum, com a imposição de leis que atentam contra a própria natureza humana, que a retificam até torná-la uma paródia (não à toa os clássicos chamavam o demônio ‘o macaco de Deus’) e que consagram a morte civil dos que ousem resmungar. No entanto, mais agoniante ainda que estas leis que nos estão a impor é a preguiça inane da única instituição que, por ser depositária da Revelação divina, poderia reavivar o senso comum entre os homens escravizados. Essa preguiça inane gela o sangue nas veias."
(Juan Manuel de Prada, La Abolición del Sentido Común)