segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Radiografia espiritual do ódio

"O ódio como desejo do mal alheio
Diz o dicionário que ódio é "antipatia e aversão a algo ou a alguém cujo mal se deseja". Essa definição tão condensada exige uma explicação. Em parte porque o ódio não é simplesmente antipatia, nem tampouco mera aversão. O ódio se opõe em realidade ao amor, primeira tendência do ser humano. E assim como há um amor perfeito, afirmação e doação sem retorno, também existe um amor imperfeito, no qual não se cumpre algum aspecto dessa afirmação e doação. Paralelamente existe um ódio perfeito e um ódio imperfeito.
Quanto à oposição entre o ódio perfeito e o amor perfeito deve indicar-se que se opõem diretamente, visto que o ódio perfeito deseja para outro um efeito mau ou um prejuízo, da mesma forma que, em sentido contrário, a amizade quer para o amigo um efeito bom. Mas há um matiz importante que não deve passar despercebido: é que no ódio perfeito o efeito mau se reveste de aparência de um bem, devido a uma causa externa e em ordem a mim, visto que o dano que se faz a outro aparece como um bem para mim; no entanto, no amor perfeito, dado que o bem que desejo ao amigo é em si intrinsecamente um bem, não é preciso uma relação externa, para que por causa dela se torne um bem e uma coisa apetecível. Não obstante, é certo que o bem desejado para o amigo é também um bem para mim; pois toda amizade pelo outro começa pelo amor a si mesmo: certamente, eu pessoalmente não amaria o amigo se não visse que isso é conveniente e bom para mim.
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Amor perfeito e ódio perfeito
O desdobramento do ódio perfeito é paralelo ao do amor perfeito.
No amor perfeito eu desejo algo bom para o amado, mas não prioritariamente para mim. No amor imperfeito eu desejaria prioritariamente algo bom para mim, ainda que redundasse também no amado.
O ódio imperfeito é a fuga de um certo mal que me desagrada; e assim se opõe inclusive ao amor imperfeito; mas se distingue da ira, a qual deseja o mal de outro sob o aspecto de vingança e de satisfação.
Por sua vez, existe um ódio perfeito, pelo qual desejamos um mal ao outro, e lhe desejamos um mal sob o caráter formal de mal. Não teríamos aqui uma prova de que o mal é querido formalmente como mal, sem roupagem de bem? Não parece que o ódio perfeito deseja o mal a outro porque é para ele um mal? Acaso o ódio perfeito foge do mal? Não será que o deseja como um mal para outro? E, assim, o desejaria sob sua natureza de mal, já que por isso se distingue do ódio imperfeito e da ira.
Ademais o ódio perfeito se opõe diretamente ao amor perfeito; este amor perfeito deseja o bem para o outro, por ser um bem para ele, não por sê-lo para mim – pois assim seria amor imperfeito - ; logo o ódio perfeito, para opor-se perfeita e absolutamente ao amor perfeito, não deve ser levado contra o outro, desejando-lhe o mal precisamente porque é um mal para ele, não porque é um bem para mim, pois isto é próprio do desejo e não se opõe direta e formamente à amizade? Não deveríamos concluir que o ódio perfeito tende ao mal sob a razão formal de mal?
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Desejar o mal a outro
Essa dúvida, entranhada na mais profunda psicologia, traz consigo uma premissa capciosa: a saber, que "o ódio perfeito deseja o mal a outro, sob o aspecto de mal". Deveria entender-se que o ódio perfeito deseja o mal a outro sob o aspecto do mal próprio do objeto, ou do mal em sentido absoluto?
Certamente eu posso desejar algo mau, ou seja, nocivo ou destrutivo para outro, justo para que produza nele efeitos maus; no entanto, o que é um mal para ele, sendo nocivo e destrutivo, se reveste do caráter de um bem aparente, inclusive nesse aspecto pelo qual é destrutivo, visto que destruir meu contrário possui a aparência de bem; e, assim, supondo que estou mal disposto contra outro homem, e supondo que o considero como meu contrário, sua destruição e dano têm uma aparência de bem para mim.
Enquanto provoco um mal a outro, e enquanto represento isso como um bem, tal coisa é desejada sob essa aparência e representação. E ao contrário, quando o bem do outro aumenta, isso parece um mal para mim, que o vejo com maus olhos.
Caetano sublinhava que a vontade não pode querer o mal sob o aspecto de mal pura e simplesmente, ou enquanto mal para mim; mas pode-se desejar um mal a outro que é considerado como contrário; com efeito, o mal para outro que é visto como inimigo se reveste do caráter de bem pelo fato de ser captado como destrutivo do contrário. E, assim, nunca é desejado sob o aspecto de mal formalmente, mas sob o aspecto de bem; desta maneira, quando desejo um mal ao inimigo, como mal para ele, o desejo sob o aspecto de um bem meu que prejudica o inimigo, ou de um bem que destrói o que me é contrário. E destruir o contrário é um bem.
Quanto à distinção entre ódio perfeito e ódio imperfeito deve-se fazer um esclarecimento importante, desde o ponto de vista psicológico: o ódio perfeito deseja o mal a outro sob o aspecto de um bem meu, já que induz um efeito mau em outro, mas isso é para mim um objeto bom ou apetecível. Por outro lado, o ódio imperfeito não deseja o dano a outro, nem deseja um objeto que provoque em outro um mau efeito: a vontade rechaça de si o que lhe é nocivo e o que lhe produz um efeito mau. E neste momento os dois ódios procedem de modo diverso: o ódio perfeito tenta conseguir o efeito mau em outra pessoa; o ódio imperfeito foge do efeito que é mau para mim.
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A ira e o ódio
Por outra parte, o ódio perfeito se diferencia da ira em que esta não contempla o mal enquanto nocivo ou destrutivo do inimigo, mas enquanto vingativo e satisfatório, e assim, comparece como justo ou equitativo. Daí que a ira cesse no momento em que se recebe a satisfação; por sua vez, o ódio não cessa por satisfação alguma, mas persegue até o final o dano e a destruição de outro, enquanto dano ao contrário. E este dano, embora não apareça como o justo e satisfatório, sem embargo, aparece como bem útil ou deleitável, ao destruir o contrário sem buscar a satisfação da justiça, mas somente o dano ao outro. Daí que o ódio suponha uma péssima disposição na vontade: pois enfoca o mal alheio como bem próprio, e somente porque é um mal em outro. Com a presunção desta perversa disposição, o mal de outro se cobre com aspecto de bem, e, ao ter o caráter de um efeito mau para outro, se reveste de bem para mim.
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Um bem para mim
Resta um reparo, a saber: o que é desejado como um bem para mim, acaso não pertence ao amor imperfeito e, portanto, não pode ser objeto formal nem da amizade, nem da inimizade?
Este reparo é facilmente salvável. Porque o objeto formal do desejo não é um bem para mim de um modo qualquer, mas o é com esta condição: que esteja em mim como no sujeito para o qual quero o bem, visto que desejo possuí-lo. Ora, se não o tenho em mim como em seu sujeito, mas o transfiro a outro para o qual o quero, então isso faz que exista um amor perfeito, embora tenha seu início em mim, visto que aquela realidade é querida para outro e não se detém em mim.
E que isso pressuponha uma ordem para mim, não impede o amor perfeito; efetivamente, o amor não pode dar-se na amizade sem que se pressuponha e sem que tenha sua origem em um amor à pessoa destinatária, visto que o amigo é julgado como outro eu. Esta é a razão por que o amor ordenado começa por si mesmo; e as coisas admiráveis para outro têm sua origem nas coisas admiráveis para si mesmo.
Mas isto que acabo de dizer se aplica também ao ódio perfeito; efetivamente, este ódio só pode existir se se supõe o amor a si mesmo, visto que eu odeio o que é inimigo ou contrário, porque é incompatível comigo e porque eu pessoalmente me amo a mim e a minha conservação.
Por isso o amor perfeito e o imperfeito, assim como o ódio perfeito e o imperfeito não podem em absoluto prescindir da relação à própria pessoa que apetece; mas se distinguem em que, no amor perfeito, a pessoa destinatária da coisa querida é distinta do sujeito amante, e assim dita coisa não se detém neste; por sua vez, no amor imperfeito, a pessoa destinatária da coisa querida é o mesmo sujeito desejante, o qual se quer a si mesmo e se detém em si.
Apesar disso, também no amor perfeito, com o qual quero o bem para outro, quero algo para mim, visto que tudo que é querer o bem em proveito do outro é conveniente e bom para mim. Da mesma maneira que querer um mal para outro é um bem para mim; de modo que o prejudicar e destruir a outro foi querido antes e, ao realizar-se, é conveniente para mim.
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Suicídio como fruto do ódio a si mesmo
Acrescentarei um último ponto sobre aquele ódio dirigido contra si mesmo que desemboca no "suicídio". Pareceria que os suicidas se odeiam a si mesmos; por sua vez, parece que neles não há nada de bom que os motive a amar semelhante ação – pois a morte própria não tem causa para ser amada, já que o viver é algo necessariamente amado, quanto a sua especificação, ao não ter nada de mal em si - ; logo o fato de eliminar a vida parece que não pode ser amado sob aspecto algum de bem, visto que retira ou elimina aquilo em que nada de mal aparece.
Bem analisada, esta argumentação margeia importantes matizes de índole psicológica e mesmo ontológica. Quem se suicida ou se odeia, materialmente quer não existir, mas formalmente quer ser o existir de outro modo, visto que o caráter formal de querer não existir é carecer da miséria e do mal. Assim, não deseja não existir de um modo absoluto, mas deseja não existir sob a miséria e as penalidades; e, assim, não odeia a vida absolutamente, mas a odeia como submetida à miséria da qual foge."
(Juan Cruz Cruz: Radiografia Espiritual do Ódio)