sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Religião líquida

"Alguns dias atrás, Jack Tollers escreveu uma postagem na qual destacou algo de que às vezes nos esquecemos ou que, pelo menos no meu caso, não terminamos de dimensionar. Refiro-me ao indeclinável dever que tem a Igreja, e que temos nós seus filhos, de manter e defender a doutrina católica até a última vírgula. Os leitores do blog dirão: "É óbvio", e efetivamente o é, mas pelas características do mundo contemporâneo e dos acontecimentos que nos tocam viver, tendemos a ser muito cuidadosos com as vírgulas da moral – o que está muito bem -, e ser mais relaxados ou desentendidos com as da dogmática. Além disso, tendemos a considerá-las detalhes ou passatempos de especialistas ociosos que não fazem mais que distrair-nos do verdadeiro combate que hoje devemos travar. É um fato que quando nestas mesmas páginas tratamos de temas de liturgia, por exemplo, vários leitores reclamam porque perdemos tempo discutindo coisas tão pouco transcendentes. Trata-se, segundo eles, de discussões bizantinas que não aportam nada à gravidade da hora atual.
O artigo de Tollers, pelo contrário, e seguindo Castellani, considerava que tais detalhes são mais graves que o próprio pecado. Não me vou meter nessa discussão, mas me parece sim fundamental que tomemos consciência da importância impostergável da luta pela pureza, até a última vírgula, da doutrina.
Já sabemos que o pontífice aereamente reinante despreza os teólogos. Publicamente tem dito – e o temos reproduzido neste blog – que deve-se deixar que os teólogos discutam entre eles as diferenças doutrinais que nos separam, por exemplo, dos luteranos, enquanto que o restante dos fiéis devemos trabalhar ecumênica e mancomunadamente sem nos preocuparmos com essas minúcias. Tem dito inclusive, em tom de brincadeira, que gostaria de encerrar todos os teólogos em uma ilha para que ali se cansassem de discutir suas questões doutrinais e deixassem em paz os pastores com odor de ovelha que fazem o trabalho importante. E a verdade é que muitas vezes somos tentados a seguir timidamente o mesmo critério. É que já não têm demasiada importância as modalidades das processões trinitárias, ou se Nosso Senhor gozou ou não da visão beatífica durante sua vida terrena. Em vez de perder tempo com isso, melhor dedicar-se a lutar contra o aborto ou a esclarecer as aventuras de Letícia. E é um erro. Um erro grave em que muitos católicos "vacas de presépio" caem facilmente.
Tomemos um só exemplo histórico dos muitos que poderíamos mencionar. No século IV se realizou o concílio de Calcedônia cujo objetivo foi confirmar a doutrina da Igreja a respeito da natureza de Cristo, já que Eutiques e Dióscoro – dois importantes bispos e teólogos – entendiam que sua natureza humana estava subsumida na natureza divina. Ou seja, no Senhor havia uma só natureza: a divina, e esta é a doutrina que se chamou monofisismo. Um detalhe; uma distinção de teólogos que não mudava em absoluto a pastoral, nem diminuía a pobreza, nem contribuía para a paz social e tampouco contaminava o odor ovino dos pastores da época. No entanto, esta heresia, ao ser condenada por Calcedônia, provocou a separação da comunhão católica do patriarcado de Alexandria, e portanto de todo o Egito, da igreja armênia e da igreja jacobita ou siríaca. Tamanha conseqüência ocasionada pela ranhetice dos bispos calcedônicos! E no entanto nem eles, nem o papa de Roma eram ingênuos ou incapazes de calcular as conseqüências mas, igualmente, consideraram que era preferível perder três grandes igrejas a modificar uma vírgula da doutrina ortodoxa.
Hoje pareceria que a unidade é mais valiosa que a verdade e que, deste modo, torna-se mais importante, ou quase só o que importa, realizar atos ecumênicos, trabalhar juntos pela promoção do homem e rezar juntos em Assis ou qualquer outro lugar, em vez de discutir e esclarecer as vírgulas de nossa fé. A muitos católicos parece mais importante determinar exatamente as condições precisas da moral matrimonial – e que Letícia não se esgueire para o quarto – que afirmar com certeza todos e cada um dos artigos do Credo. E isso tem um nome: joãopaulismo puro, porque o papa João Paulo II foi o primeiro emergente do Vaticano II neste sentido: descuido da dogmática e concentração em moral. Bergoglio, o segundo, e creio o último emergente do mesmo Concílio, tem-se manifestado como o descuido e desprezo de toda a teologia – moral e dogmática – em favor da pastoral. Uma vez mais o dizemos: a ablação do intelecto especulativo e reinado absoluto do intelecto prático.
Este novo conceito de religião que inaugurou o Concílio Vaticano II e que foi referendado por todos os pontífices seguintes propõe, no fundo, uma religião líquida, ou seja, um fluido capaz de ser vertido em qualquer recipiente adotando sem resistências a forma que este tenha. É por isso que os Padres Conciliares falaram de um concílio pastoral que rejeitava qualquer intento de definição, e é por isso que Francisco se nega não somente a definir, mas também a repetir as definições mais óbvias; porque, se define, a religião começa a solidificar-se e já não pode derramar-se em qualquer recipiente e muitos deles ficarão vazios.
Mas o problema desta concepção é que o líquido é incapaz de sustentar estruturas. Ninguém edifica sua casa sobre um lago, sem antes haver fixado firmemente os alicerces no leito firme e rochoso. Os progressistas e neoconservadores pensam que com a doutrina líquida é suficiente simplesmente porque os tempos mudaram e, por isso, pretendem manter tudo o que a Igreja teve e conseguiu durante os duros séculos das estruturas dogmáticas com a tranquilizadora canção de ninar do fluido das ondas. E por manter tudo me refiro a manter os curas celibatários, manter templos e colégios dispendiosíssimos, manter as coletas e todo o aparato necessário que requer a religião. Mas é impossível. Dificilmente um cura conseguirá manter-se celibatário se dá no mesmo ser cura católico ou pastor calvinista; escassamente se encontrarão jovens dispostos a defender sua pureza se Letícia tem permissão pontifícia para regozijar-se e se os católicos estamos impedidos de julgar certas condutas; com muita dificuldade os fiéis contribuirão para a manutenção do culto, se sabem que o trabalho social a que se reduziram as atividades da paróquia da esquina é feito com maior eficácia pela ONG da outra esquina; será quase impossível encontrar jovens que queiram consagrar sua vida às missões se, desde cima, se determina que o proselitismo é daninho, que não se deve converter os judeus e que o ideal pontifício é que os cristãos vivam como irmãos com os muçulmanos.
Dizia Chesterton há várias décadas que é como se o caule de uma roseira murchasse até desaparecer de vista e as pétalas da rosa continuassem ondulando. "É como se pudesse haver raios de sol depois de desaparecer o sol. Não é só a coisa maior de uma coisa, mas a maior e mais forte a que se sacrifica à parte pequena e secundária." Tiraram-se as fundações mas se pretende que o castelo se mantenha em pé. Em outras palavras, o Concílio Vaticano II e os pontífices seguintes infectaram a Igreja com uma enfermidade que só destrói os ossos. A pergunta é quanto tempo mais estes bons homens pretendem que se mantenham os músculos em tensão e a carne com forma humana sem vir abaixo em uma massa informe. Quase uma pergunta retórica; Bergoglio está se encarregando de ir jogando em um caldeirão as cartilagens, órgãos, pelos e pedaços de carne que ficaram informes quando se lhes retirou a estrutura óssea.
Há solução? Humanamente falando, não vejo nenhuma. Já mais de uma geração tem vindo a sofrer este câncer que acabou por carcomer seus ossos. E o problema não é que não possam voltar a regenerar-se; o problema é que a carne atual não os suportaria."

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