domingo, 8 de julho de 2018

A última luz


“São muitos os leitores que me escrevem inquietos, alguns muito ofendidos em suas crenças, outros em um estado de angústia próximo à perda da fé, suplicando-me que me pronuncie sobre tal ou qual desvario eclesiástico. Durante muitos anos ofereci minha cara nua para que a quebrassem os inimigos da fé; até que, certo dia, começaram a quebrá-la também (e com que sanha!) seus supostos guardiães. Hoje atravesso uma noite escura da alma de incerta saída; pelo que, sentindo muito, não posso atender às solicitudes de meus leitores angustiados, senão em todo caso juntar-me a sua tribulação; ao invés, recordar-lhes-ei uma passagem das Escrituras que, em momentos tenebrosos, convém ter presente, para que não morra a esperança. E estas linhas serão as últimas que dedicarei a esta questão comovedora.
Em uma das visões do Apocalipse se nos fala da Grande Prostituta que “fornica com os reis da terra” e “embriaga as pessoas com o vinho de sua imoralidade”. Esta Grande Prostituta é a religião adulterada, falsificada, prostituída, entregue aos poderes deste mundo; e é a antítese da outra mulher que aparece no Apocalipse, a parturiente vestida de sol e coroada de estrelas que tem que fugir para o deserto, perseguida pela Besta. Se a Grande Prostituta significa a religião ajoelhada diante dos “reis da terra”, a Parturiente representa a religião fiel e mártir. Estas duas facetas da religião, que para Deus são perfeitamente distinguíveis, não o são sempre para os homens, que com freqüência confundem uma com a outra (às vezes por candura, às vezes por perfídia); e só serão plenamente distinguíveis no dia da ceifa, quando se separem o trigo e o joio. Entretanto, para tratar de distinguir esta religião prostituída temos de guiar-nos pelos indícios com que nos brindou Cristo: é a religião transformada em sal insípido, é a religião que cala para que gritem as pedras, é a religião que permite a “abominação da desolação”, adulterando, ocultando e até perseguindo a verdade. “Expulsar-vos-ão das sinagogas – profetizou Cristo, em um último aviso aos navegantes -. E, quando vos matarem, pensarão que estão prestando um serviço a Deus”. Evidentemente, não estava se referindo à perseguição decretada pelos reis da terra, senão à perseguição muito mais pavorosa – sumo mistério de iniqüidade – impulsionada pela Grande Prostituta.
Como fornica a Grande Prostituta com os reis da terra? Rebaixando-se diante de suas leis, transigindo diante de sua ditadura ideológica, calando diante de suas aberrações, cobiçando suas riquezas e honras, apegando-se aos privilégios e brilhos com que a têm subornado, para tê-la a seus pés; em suma, pondo os poderes deste mundo no lugar que corresponde a Deus. E como embriaga as pessoas com o vinho de sua imoralidade? Adulterando o Evangelho, reduzindo-o a uma lastimável papa bom-mocista, turvando a doutrina milenar da Igreja, cortejando os inimigos da fé, disfarçando de misericórdia a submissão ao erro, semeando a confusão entre os singelos, condenando ao desnorteamento e à angústia os fiéis, os quais inclusive assinalará como inimigos diante das massas cretinizadas, que assim poderão linchá-los mais facilmente. Ao final esses fiéis serão muito poucos; mas, por outro lado, serão terrivelmente visíveis, provocando o ódio da religião prostituída, que os perseguirá até o deserto: “ E sereis odiados por causa de meu nome, mas o que perseverar até o fim, este será salvo”.
Entretanto, Deus manterá suas promessas sobre a permanência e infalibilidade de suas palavras: “Céu e terra passarão, mas minhas palavras não passarão”. E esta última luz será nosso único consolo, enquanto nos invade a noite escura da alma.”
(Juan Manuel de Prada, La Última Luz)