domingo, 10 de junho de 2018

Liberdade de pensamento


"Em 1984, explicando as artimanhas empregadas pelo Partido para transformar o pensamento das pessoas, George Orwell conta que ocupava um lugar preferencial fazer crer que “tanto o passado como o mundo exterior existem somente na mente”. Diante do que Winston Smith, o protagonista do romance, se rebela, dizendo: “O mundo material existe, suas leis não mudam. As pedras são duras, a água é líquida, os objetos largados no ar caem sobre a crosta da terra. A Liberdade significa liberdade para dizer que dois mais dois são quatro. Se isso se admite, tudo o mais se dá por acréscimo". A Liberdade, para Orwell, se funda na verdade; e já se sabe que nada ofende tanto (sobretudo em épocas de engano universal) como a verdade. Por isso todos os tiranos que houve no mundo trataram de escamotear a verdade das coisas; e o homem livre aspirou a desentranhá-la. Nisto deveria consistir a "liberdade de pensamento". Mas... será esta a 'liberdade de pensamento' que hoje proclamamos?
Não pode sê-lo pela simples razão de que nossa época não reconhece a existência da verdade, que Orwell considerava premissa da liberdade. O subjetivismo nega que a verdade das coisas possa ser conhecida, pois considera que o entendimento está limitado pela experiência. O relativismo afirma que o que as coisas são desde nossa perspectiva e conjuntura não o seriam se a perspectiva e a conjuntura fossem distintas. O ceticismo, por fim, nos impõe duvidar de tudo, pois considera que somos incapazes de alcançar a verdade. A verdade certa das coisas evaporou-se de tudo, realizando aquele desejo do Partido que exigia que tanto o passado como o mundo exterior só existissem como figuras mentais. Curiosamente, isto não ocorre sob um poder ditatorial como o que imaginou Orwell, mas sob regimes democráticos. Mas talvez, como afirmava Kelsen em Da essência e valor da democracia, "a causa democrática apareceria desesperada se se partisse da idéia de que se pode aceder a verdades e captar valores absolutos."
Ao não se reconhecer a existência da verdade (ou diante da impossibilidade de aceder a ela), já não pode existir adequação do intelecto às coisas (que era a definição aristotélica de verdade). Abolida a verdade, invocou-se como princípio a objetividade, que pressupõe imparcialidade; mas ninguém pode crer seriamente que um sujeito que não reconhece a existência da verdade possa ser outra coisa senão subjetivo. Logo, o conceito de objetividade foi substituído pelos de sinceridade ou autenticidade, que já só podem presumir "dizer o que alguém pensa (ou sente)". A verdade se torna, então, coerência com as próprias idéias, que naturalmente terão de ser subjetivas; mas, uma vez subtraída a adequação do intelecto às coisas, como sabemos que essas idéias que cremos próprias não são em realidade idéias induzidas por outros? Como sabemos que estamos dizendo o que pensamos e não o que outros nos 'predispuseram' ou 'ensinaram' a pensar? Como sabemos que estamos pensando e não tão somente 'sentindo'? No fim das contas, nada há tão 'sincero', tão 'autêntico', como a expressão de sentimentos. E nada tampouco tão fácil de excitar, de estimular e, em definitivo, de induzir: basta comprovar a facilidade com que algumas imagens lançadas através da televisão conseguem nos indignar ou nos comover; ou a celeridade com que conseguem 'mobilizar-nos' através das redes sociais. Quando a verdade foi subtraída, nada mais simples que 'subministrar' pensamentos que nos façam sentir autênticos. Assim acreditava Adam Smith, quando afirmava que, "nas sociedades opulentas, pensar é uma operação muito especial, reservada a um reduzido número de pessoas, que subministram todo o pensamento de que deve dispor a multidão dos que penam." Assim também Rousseau, quando explicava como se 'criava' a chamada cinicamente 'opinião pública': "Corrigi as opiniões dos homens e seus costumes se depurarão por si mesmos". Em Admirável mundo novo, a fábula futurista de Huxley, esta 'liberdade de pensamento' era criada durante o sono, mediante um mecanismo repetitivo que falava sem interrupção ao subconsciente; em nossa época, isto se consegue através dos métodos, conhecidos de todos, de controle social e condicionamento dos espíritos, que nos ensinam o que podemos pensar e o que devemos rejeitar, o que convém dizer e o que convém calar, para podermos continuar sendo aceitos na manada e acolhidos no redil, onde nos aguardam no cocho os pensamentos permitidos que podemos ruminar e deglutir tranquilamente, para alívio de nossas penas."
(Juan Manuel de Prada, Liberdad de Pensamiento)