sábado, 28 de abril de 2018

O processo de dois camponeses heréticos da aldeia de Bucy


“Visto que conhecemos os heréticos que esse ímpio conde de Soissons amava, podemos mencionar certo camponês chamado Clemente, que vivia em Bucy com seu irmão Evrard, uma vila na vizinhança de Soissons. Freqüentemente anunciava-se que ele era um dos líderes de uma heresia. O infame conde costumava perambular dizendo que um homem mais sábio do que esse Clemente não podia ser encontrado em lugar algum. Esse não é o tipo de heresia cujo ensinamento é abertamente defendido pelos seus mantenedores. Pior, ela rasteja clandestinamente como uma serpente e somente se revela através de seus contínuos deslizes.
Laconicamente, era encorajada pelos seus seguidores: eles declaram que a encarnação do filho da Virgem é uma ilusão; rejeitam o batismo de crianças antes da idade da razão, quaisquer que sejam seus padrinhos; invocam em seu próprio discurso a palavra de Deus, que se sucede através de uma longa recitação de palavras; odeiam o mistério que nós cantamos sobre nossos altares e chamam a boca de qualquer padre de boca do inferno. A fim de ocultarem sua heresia de outros, eles sempre recebem nossos sacramentos. Naquele dia, se consideram obrigados a jejuar e não comem mais nada. Não fazem distinção entre os cemitérios de solo sagrado e qualquer outro tipo de solo. Condenam o casamento e a procriação da prole.
De fato, por onde quer que estejam espalhados pelo mundo latino, esses homens podem ser vistos vivendo com mulheres sem tomar o nome de marido ou esposa. Nem mesmo podem-se ver homens e mulheres se confinarem aos mesmos parceiros: homens dormem com outros homens e mulheres com mulheres, pois asseguram que a relação de homens e mulheres é um crime. Eliminam qualquer descendência que brote de suas relações. Eles mantinham seus encontros em galerias sob o solo, em porões escondidos e sem distinção de sexo. Acendiam velas e se apresentavam para exibirem a uma jovem que – e isso está relatado – posicionava-se inclinada tendo suas nádegas expostas para todos verem.
Em breve, as velas se apagavam e eles gritam ‘Caos!’ de todos os lados e todos tinham relações com a primeira pessoa que tinham em suas mãos. Se uma mulher ficasse grávida no processo, voltavam para o mesmo lugar depois que ela tivesse dado à luz. Uma grande fogueira é acesa e aqueles sentados ao redor arremessam o bebê de uma mão para a outra através das chamas, até que a criança esteja morta. Quando o corpo da criança está reduzido a cinzas, fazem pão com elas e uma parte é distribuída a todos, como um tipo de sacramento e, uma vez tomado, ninguém se salva daquela heresia. Se alguém relê a lista de heresias compilada por Agostinho, percebe que ela é muito parecida com a dos maniqueístas.
Originalmente iniciada por pessoas bem educadas, essa heresia absorveu os camponeses que, alegando estarem absorvendo a vida apostólica, tinham lido os Atos dos Apóstolos e um pouco mais. Então, o bispo Lisiard de Soissons, um homem muito ilustre, intimou-os para o propósito de uma inquirição entre os dois heréticos que mencionamos, diante dele. O bispo começou acusando-os de realizar encontros fora da igreja e com heréticos bem conhecidos por aqueles ao redor deles. Clemente respondeu: ‘Meu senhor, você não leu no Evangelho beati eritis?’ [‘Você deverá ser abençoado?’]. Como era iletrado, pensou que a palavra eritis significava ‘heréticos’ e, além disso, pensou que ‘heréticos’ era para ser entendido no sentido de ‘herdeiros’, ainda que não de Deus, para ser sincero.
Quando foram interrogados sobre suas crenças, eles responderam da maneira mais cristã e negaram manter tais encontros. Mas como essas pessoas tipicamente negam todas as acusações e, em segredo, seduzem os corações e as mentes de pessoas simples, foram sentenciados para exorcismo ao ordálio da água. Enquanto os preparativos para esse ordálio estavam sendo feitos, o bispo me pediu para tomar em particular as opiniões deles. Quando levantei a questão do batismo de crianças, eles responderam: ‘Quem acredita e é batizado será salvo’. Como estava atento que uma boa resposta poderia, nesse caso, ocultar a mais soberba perversidade, perguntei a eles o que pensavam a respeito dos que são batizados de acordo com outra fé, e eles responderam: ‘Por Deus, não nos investigue tão profundamente!’ E para cada uma das questões, acrescentaram: ‘Nós acreditamos em tudo o que você diz.’ Então, eu me lembrei de um daqueles dizeres ao qual todos os priscilianistas costumavam aderir: ‘Faça juramento, perjure, mas não entregue o segredo.’
Então virei para o bispo e disse: ‘Como as testemunhas que os ouviram professar essa doutrina não estão aqui, levem-nos para o julgamento que foi preparado.’ As testemunhas eram certa dama que Clemente havia enlouquecido durante o ano passado, e um diácono que ouviu Clemente dizer as coisas mais perversas. Então, o bispo celebrou a missa e os heréticos receberam os sacramentos de sua mão assim que ele disse: ‘O corpo e o sangue do Senhor pedem por vocês a prova neste dia.’ Mais tarde, esse bispo mais que sagrado dirigiu-se para as águas com Pedro, o arquidiácono, um homem de fé inabalável que havia rejeitado os pedidos dos heréticos para não serem submetidos ao ordálio. Com muitas lágrimas, o bispo recitou as litanias e procedeu ao exorcismo.
Depois disso, o acusado jurou que nunca havia acreditado ou pensado em coisa contrária à nossa fé. Atirado dentro do tanque de água, Clemente ficou boiando como um pedaço de palha. Vendo isso, toda assembléia foi arrebatada com júbilo. Deve ser acrescentado que esse teste havia arrastado uma multidão de ambos os sexos e que ninguém conseguiu se lembrar de ter visto algo assim. O companheiro de Clemente confessou seu erro, mas sem expressar qualquer remorso. Com seu irmão condenado, ele foi atirado em uma cela. Dois outros heréticos declarados da vila de Dormans vieram para o espetáculo e do mesmo modo foram arrastados. Nós então fomos ao Concílio de Beauvais para consultar os bispos sobre o que deveria ser feito. Mas enquanto isso, o povo, cheio de fé e temendo a fraqueza do clero, correu para a prisão, forçou-a e queimou os heréticos em uma grande pira acesa fora da cidade. Assim, o povo de Deus, temendo que esse câncer se espalhasse, fez justiça com suas próprias e zelosas mãos.”
(Guiberto de Nogent, De Vita Sua)

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