quarta-feira, 15 de março de 2017

A conversão do Papa


"Nenhum dos autógrafos inéditos que se encontram na coleção Everett, agora propriedade minha, me convida mais freqüentemente a uma nova leitura que o poemeto de Roberto Browning. Foi Browning menos célebre que Cervantes e que Goethe, também destes tenho manuscritos em minha caixa forte portátil, mas me dou conta de que estou mais próximo dele que dos outros. Trata-se de um dos imaginários solilóquios que figuram entre os mais felizes inventos do poeta, e me assombra que jamais o tenha publicado. Seu título é estranho: A Conversão do Papa. Creio que é uma idéia genial. No poema fala o filho único de um ignoto herege boêmio da Idade Média, herege a quem Browning chama Jan Krepuzio; por haver professado publicamente algumas teorias blasfemas sobre os motivos da Redenção, a Inquisição o fez prender, torturar e finalmente foi queimado vivo em uma praça de Praga. Seu filho, o menino Aureliano, foi escondido na Alemanha por alguns parentes distantes, mas jamais pôde esquecer o fogo que havia consumido seu pai. Uma vez adulto e livre decidiu vingar-se da Igreja de Roma, empregando um novo sistema de vingança jamais ideado por outro. Com nome falso foi a um convento de Milão, e solicitou ser recebido como irmão leigo. Sua obediência e bondade lhe valeram o prêmio desejado e foi recebido entre os noviços. Seu zelo pela vida monástica e pela Sagrada Teologia pareceu ser tão ardoroso e sincero, que ao cabo de somente três anos foi ordenado sacerdote. Obteve então ser enviado a pregar a verdade católica a países de infiéis e cismáticos, e com sua palavra e exemplo conseguiu converter cidades inteiras. Foi encarcerado pelos inimigos da verdadeira fé, mas pôde fugir de suas mãos, e até se disse que o conseguiu com a ajuda de um anjo. Seu nome chegou aos ouvidos do Pontífice reinante, que o chamou e lhe conferiu um bispado. Também como bispo e em breve tempo, chegou a ser famoso entre os povos. A austeridade de seus costumes em meio a um clero corrompido, a vitoriosa eloqüência de sua palavra, a perfeita ortodoxia de seus ensinamentos teológicos, tudo fez dele um dos prelados mais exemplares e ilustres de seu século. Mas isso não lhe bastava, precisava obter outras honras e dignidades para consumar a vingança premeditada. Em suas vigílias jamais esquecia a fogueira na qual haviam feito arder seu pai, segundo ele injustamente. Devia vingá-lo, em forma diabólica e clamorosa, precisamente na capital da Cristandade, em Roma, em São Pedro. A palidez de seu rosto abatido era atribuída ao ascetismo de sua vida, mas na verdade não era mais que o reflexo de seu prolongado rancor, era o efeito de uma fadigosa e perpétua simulação. Morreu o ancião Papa e foi eleito outro que havia conhecido e admirado Aureliano, e no primeiro consistório o criou cardeal. Aureliano já se via próximo à meta, e seu ardor apostólico em prol da Igreja aumentou mais e mais. Foi Legado Pontifício, Doutor em um Concílio e Cardeal de Cúria; em tudo isso demonstrou ser um infatigável defensor dos dogmas e dos direitos da Igreja Romana. Já era quase ancião, mas o alucinante pensamento da vingança não o deixava nem de dia nem de noite. Também foi alcançado pela morte o Papa seu protetor, e no conclave seguinte Aureliano foi eleito Vigário de Cristo, obtendo a unanimidade dos sufrágios. Ainda então soube ocultar seu imenso prazer sob a máscara de uma tranqüila humildade. Já estava próximo o grande dia por ele esperado e desejado secretamente durante dolorosos anos de forçada comédia. Havia sido eleito no começo de dezembro; então anunciou ao Sacro Colégio e à Corte do Vaticano que a cerimônia de sua coroação se realizaria na mesma noite de Natal. Desde muitíssimo tempo antes havia planejado e sonhado a inaudita cena: depois do Pontifical, depois de realizados todos os ritos da coroação, dono já dos privilégios e das prerrogativas do Supremo Magistério como cabeça infalível da Igreja Docente, então se poria de pé para falar ao clero e ao povo, e no silêncio solene da máxima basílica pronunciaria finalmente as tremendas palavras que vingariam para sempre o pai inocente. Diria que Cristo não era Deus, que havia sido um pobre bastardo, um pobre poeta iludido vítima de sua ingenuidade, e finalmente, aqui faria ressoar sua voz como um desafio satânico, finalmente, com o selo de sua autoridade proclamaria que Deus jamais havia morrido porque jamais havia existido. Qual teria sido o efeito causado por tão espantosas blasfêmias, brotadas dos lábios de um Pontífice Romano? Talvez, depois do primeiro momento de estupor tê-lo-iam interrompido, gritando que era um louco? Fá-lo-iam em pedaços sobre o túmulo de São Pedro? Não se preocupava muito com isso; a voluptuosidade brindada por tão estupenda vingança jamais teria um preço demasiadamente elevado. Chegou a vigília de Natal e anoiteceu. Todos os sinos de Roma repicavam em festa, rios humanos de nobres e plebeus iam à Praça de São Pedro, enchiam o grande templo que parecia ser uma imensa cavidade luminosa, para poderem assistir à faustosa cerimônia que celebrava simultaneamente o Nascimento de Deus e a coroação de seu Vigário na terra. De uma sala de seu palácio Aureliano olhava e escutava. Via aquelas multidões de fiéis felizes e confiantes, ouvia seus cânticos de Natal, seus louvores, seus hinos, e em todos eles transparecia uma simples mas infinita esperança no Divino Infante, no Salvador do mundo, no Consolo dos pobres, dos perseguidos e aflitos. E naquele instante, naquela sala onde o novo Papa se havia fechado, sozinho, para concentrar seus pensamentos e suas forças, aconteceu algo que jamais foi conhecido por outros, realizou-se o inesperado e providencial milagre: o pensamento de toda aquela pobre gente que corria até ele, que cria nele porque havia crido em suas palavras, esse pensamento o confundiu, o comoveu, o sacudiu e arrastou consigo. Experimentou um calafrio, sentiu-se agitado por um tremor, pareceu-lhe que uma luz jamais vista invadia a gruta escura de sua alma. Repentinamente se sentiu inundado e vencido por uma doçura aniquiladora jamais experimentada em sua longa vida, por uma ternura infinita a todas aquelas almas simples, infelizes e no entanto felizes, que criam em Cristo e em seu Vigário, e subitamente, o nó negro e gravoso da anelada vingança se desfez, se cortou, se dissolveu em um pranto contínuo, desesperado, que lhe queimava os olhos e o coração, que consumia seu interior mais que uma chama viva. O novo Papa se prostrou sobre o mármore do pavimento, e orou de joelhos, orou pela primeira vez com abandono total da alma, com toda a sinceridade da paixão, como nunca havia orado em toda sua vida. O vento impetuoso da Graça o havia derrubado e vencido no último instante. Até a própria dor do ressentimento por seu infame passado de fingimento, de engano e duplicidade, lhe parecia um consolo imerecido, um consolo divino. Aquela dor queimante o poderia acompanhar até a morte, mas purificando-o, salvando-o da segunda morte. Quando os ajudantes e acólitos entraram na sala precedidos pelo Cardeal Decano, encontraram o novo Papa ajoelhado, feito um mar de lágrimas, e se sentiram grandemente edificados. Concluído o solene rito da coroação, o Pontífice quis falar ao povo. Falou de Cristo e de seu nascimento em Belém, falou da Mãe Virgem, dos anjos e dos pastores, e o fez com tal calor de afeto que todos os ouvintes, até os velhos cardeais apergaminhados em sua púrpura, choraram como filhos que finalmente encontram o pai que criam perdido. E muitas mulheres, ao saírem da Basílica iluminada para a escuridão da cidade, afirmaram que ao cabo de séculos um verdadeiro santo havia ascendido à Cátedra de São Pedro."
(Giovanni Papini, Il Libro Nero)