segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O juízo temerário (I)


“Em artigos anteriores temos mostrado a ação nociva do liberalismo religioso, que timbra em deformar nos católicos as virtudes mais adequadas à luta e ao combate, criando assim o tipo ridículo do “carola” inofensivo e inepto, que o próprio liberalismo é o primeiro a estigmatizar afirmando que a Igreja não é capaz de produzir figuras diversas desta.
Se o liberalismo se empenhou particularmente em iludir as massas católicas a respeito da virtude da fortaleza, é certo que outra virtude, a da perspicácia, também tem sido muito combatida pela propaganda liberal. Muitos católicos se terão por certo espantado quando afirmamos que o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma inigualável escola de energia e heroísmo no sentido mais belicoso da palavra. Sua surpresa não será menor se lhes dissermos hoje que o Evangelho é uma inigualável escola de perspicácia, e que Nosso Senhor Jesus Cristo inculcou reiteradamente esta virtude.
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O que vem a ser perspicácia? É a virtude pela qual nosso olhar, transpondo as aparências enganosas apresentadas pelas pessoas com quem lidamos, penetra até à realidade mais recôndita de sua mentalidade. Assim, diz-se de uma autoridade eclesiástica ou civil que é perspicaz se, através da prolixidade dos conselhos e informações que recebe, sabe discernir a verdade do erro, adotando em conseqüência uma linha de conduta conforme os interesses que tem em mãos. Dentro da mesma ordem de idéias, pode-se dizer que é perspicaz um médico que sabe discernir a existência de uma moléstia através dos mais ligeiros indícios. E no mesmo sentido ainda se chamaria perspicaz o detetive que sabe interpretar as circunstâncias aparentemente mais insignificantes, delas deduzindo com segurança qual foi o autor de um crime. Difícil seria imaginar uma profissão ou condição social em que a perspicácia não fornecesse ao homem os mais inestimáveis recursos para o cumprimento de seus deveres. O pai de família, o professor, o diretor de consciências precisa discernir em seus alunos, dirigidos ou filhos, os mais ligeiros sintomas das crises que se esboçam, a fim de prevenir o que de futuro seria talvez impossível remediar. O homem de Estado não pode deixar de distinguir, por entre as múltiplas manifestações de amizade que seu alto cargo suscita, os amigos sinceros dos insinceros: todo o êxito de sua carreira política está condicionado a esta aptidão. Os advogados, militares, industriais, comerciantes, banqueiros, jornalistas, etc., etc., não podem exercer convenientemente suas funções, nem poupar aos interesses que têm em mãos os mais graves sacrifícios, se não forem munidos de uma perspicácia hoje mais necessária do que nunca.
A este respeito queremos insistir muito especialmente: todo mundo tem, em certas circunstâncias, o direito de arcar com prejuízos que afetem seus interesses individuais. Ninguém, entretanto, tem o direito de expor os interesses de terceiros. Haverá situação mais ridícula do que a de alguém que declare romanticamente haver comprometido os interesses de terceiros que lhes estavam confiados, porque “foi bom demais e confiou excessivamente na bondade alheia”? “Bom demais”? É realmente ser “bom demais” sacrificar ao amor próprio de uma meia dúzia de aventureiros os interesses sagrados confiados à pessoa que assim procura se inocentar? Quem não percebe que essa “bondade” fora de propósito redundou em uma injustiça cruel para com os terceiros prejudicados no caso?
Apliquemos na ordem concreta dos fatos estes conceitos. Um apóstolo leigo que, por “excessiva bondade”, tolera em alguma associação membros gangrenados nos quais confia infundadamente, e que ocasionam a perda de todos os outros, não é um traidor que sacrifica cruelmente os elementos sãos e inocentes aos elementos culpados?
“Se teu pé de escandaliza, corta-o. Se teu olho te escandaliza, arranca-o”. É esta a máxima do Evangelho. Mas quanta perspicácia é necessária para perceber a premência de certas amputações! E, no entanto, o apóstolo leigo que não sabe discernir a oportunidade destes cortes dolorosos, ou não sabe apreciar a utilidade de tais amputações, não é menos inepto nem menos perigoso para o laicato católico do que o médico que desprezasse sistematicamente o emprego dos processos cirúrgicos.
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Não foi outra a razão pela qual Nosso Senhor, além de recomendar a amputação dos membros gangrenados de qualquer sociedade humana, falou de modo todo particular contra os falsos profetas e os lobos disfarçados em ovelhas. Qual a virtude que nos faz evitar os aventureiros arvorados em profetas senão a perspicácia? Qual virtude que nos leva a repelir o lobo metido na pele da ovelha senão a perspicácia? E o que de mais triste do que, por falta de perspicácia, seguir falsos profetas ou abrir o aprisco às falsas ovelhas?
Por isto mesmo Nosso Senhor não se limitou a pregar a perspicácia, mas deu dela exemplos insignes e memoráveis. Assim, quando o Divino Mestre denunciava os fariseus, o que fazia senão estimular a perspicácia de seus ouvintes, desmascarando aqueles sepulcros caiados, brancos por fora e por dentro cheios de podridão? E, entretanto, se o “Legionário” dissesse de alguém - de um violador de tratados e concordatas por exemplo - que é um sepulcro caiado, quem não afirmaria que além de faltarmos com a caridade estaríamos cometendo um juízo temerário?
Em torno deste capítulo dos juízos temerários, quanta teologia de água doce não se tem feito?
É precisamente para desfazer um pouco do ridículo romantismo edulcorado e pietista, que em torno da questão do juízo temerário se tem formado, que escreveremos nosso próximo artigo.
[II]
Grande número de incompreensões a respeito do assunto provém de uma análise superficial da palavra “juízo”. Muitas são as pessoas que receiam fazer uma suspeita desfavorável a terceiros, porque, caso a suspeita não seja comprovada ulteriormente, terão cometido um juízo temerário. Mas uma suspeita poderá ser considerada juízo?
Para decidir a questão, basta recorrermos às noções correntes. O juízo, ou sentença, implica em uma afirmação. Só fazemos um juízo acerca de alguém quando chegamos a uma certeza a respeito desse “alguém”. Uma suspeita não constitui um juízo, e, assim, quem suspeita de outrem não pode, propriamente, formar um juízo temerário, e isto pela simplicíssima razão de que não chegou a estabelecer juízo algum. Com efeito, a suspeita é uma hipótese que formulamos a respeito de uma pessoa. E a hipótese evidentemente não é uma certeza.
Assim, ainda que tenhamos feito sobre uma pessoa uma suspeita infundada, não teremos com isto cometido um juízo temerário.
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Quer isto dizer que podemos arbitrariamente suspeitar do próximo? Evidentemente não. O que se requer neste assunto é simplesmente um uso correto das leis da lógica. Com efeito, há pessoas que tomam às vezes atitudes que, em sã lógica, suscitam uma legítima suspeita. E, neste caso, suspeitar não pode constituir um pecado. Com efeito, se pelo emprego correto das luzes naturais que Deus nos deu chegamos a formular uma hipótese plausível, poderá haver pecado em que demos acolhida a essa hipótese? Evidentemente não.
Em que caso, então, uma suspeita pode ser pecaminosa? Quando se basear em elementos logicamente insuficientes para tal. Ou, em outros termos, quando com elementos insuficientes para formular uma suspeita, nós entretanto a formulamos, quer por leviandade, quer por má vontade, quer por qualquer outro defeito. Trata-se aí, evidentemente, de um mau emprego das regras da lógica e implicitamente de uma injustiça censurável.
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Quer isto dizer que devemos evitar qualquer suspeita, de medo de errar?
Também não. Seria tão estulto quanto se deixássemos de andar, de medo de escorregar e quebrar a espinha; deixar de respirar, de medo de ingerir micróbios; deixar de comer, de medo de assimilar alimentos nocivos à saúde.
Todos nós sabemos que o homem é falível, e que portanto pode, ainda que contra a sua vontade, fazer uma suspeita ou um juízo infundado. Mas se daí se devesse deduzir que jamais devemos formular contra o próximo um juízo ou uma suspeita, erraríamos, como erraríamos se quiséssemos promover a abolição de todos os tribunais e todas as penas, porque os tribunais se podem enganar e as penas podem eventualmente ser injustas.
Ao formar a respeito do próximo nossas impressões, nossas suspeitas e nossas certezas, usemos sempre de cautela, a que normalmente somos obrigados em questões importantes. Isto posto, estejamos com a consciência tranqüila: não estaremos pecando.
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Por que motivo o receio de julgamentos errados não pode servir de fundamento para que se pleiteie a abolição dos tribunais? A razão é evidente. A supressão dos tribunais daria lugar a injustiças e crimes mil vezes mais numerosos e mais lamentáveis do que uma ou outra injustiça inevitável no funcionamento de qualquer tribunal humano. Isto posto, é no interesse da própria justiça que se deve o homem conformar com um regime judiciário que, falível como tudo que é humano, de quando em vez sacrifica involuntariamente algum inocente.
Este princípio pode ser perfeitamente aplicado ao assunto de que tratamos neste artigo. Qualquer indivíduo que, de medo de formar suspeitas infundadas a respeito dos outros, mantivesse seu juízo perpetuamente em suspenso, causaria males certamente maiores do que os que decorreriam de um uso criterioso de suas luzes naturais. Demonstramo-lo no último artigo. O pai que tivesse receio de formar juízo temerário acerca de seus filhos, procurando observá-los e discernir neles os primeiros sintomas de alguma crise moral, prejudicaria muito e muito mais seus filhos com isto, do que se, involuntariamente, fizesse algum dia uma suspeita infundada, que a falibilidade humana sempre pode deixar passar. Um chefe de empresa econômica, que deixasse de dar a devida atenção a perigosos indícios de desonestidade de seus sócios ou empregados, por medo de fazer uma suspeita temerária, estaria agindo de modo sumamente incorreto. Um político, um diplomata, um professor, um advogado, um diretor de consciências, um apóstolo leigo, que deixassem de dar o devido valor aos indícios desfavoráveis que pudessem notar nas pessoas com quem tratam, seriam certamente muito mais perigosos em determinadas circunstâncias do que inimigos declarados da Religião, da família, dos interesses dos clientes, dos alunos, etc., etc.
A esse respeito, não me posso furtar de narrar uma interessante reflexão do saudoso e grande Dom Duarte. Disse-me certa vez aquele santo e imortal Prelado que “preferia lidar com um canalha do que com um burro” - conservo textualmente a expressão. E acrescentava: “Um canalha inteligente, se jogarmos com ele com inteligência, poderá por nós ser reduzido à inocuidade; mas um burro que dá coices a torto e a direito, o que não se poderá recear dele?” Quem não vê o pleno cabimento desta reflexão do grande e santo Bispo?
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Chegamos ao âmago de nosso assunto. Andam erradamente, e muito erradamente, os que dizem que não querem formar juízos ou suspeitas sobre os outros, porque a tal não têm direito. Distingo. É inconveniente que andemos a fiscalizar as pessoas cuja conduta não se encontra sob o raio de nossa autoridade. Mas que sejamos obrigados a não formar impressões sobre aquilo que naturalmente nos salta aos olhos, na vida de todo o dia, quem ousará sustentá-lo? Quem não percebe que se trata aí de um processo de imbecilização que acaba por ferir os próprios princípios de Fé e de moral? Com efeito, um homem de caráter firme e varonil sente uma dissonância interior cada vez que nota que, em torno de si, as coisas se passam de modo contrário à glória de Deus, à exaltação da Santa Igreja, e da doutrina católica. Deixar de formar juízo sobre o que é evidente, deixar de ouvir o clamor dos indícios veementes, ou é imbecilidade ou fraqueza de princípios. Não há por onde escapar.
Assim, formar juízo e formar suspeitas, quando isto é dirigido pelas virtudes cardeais, e não se orienta pela ação de qualquer inclinação viciosa, é virtude e alta virtude. E deixar de formar juízo ou suspeita quando o caso se apresenta, pode ser defeito, e grave defeito.
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Liricamente, muita gente costuma sustentar que “isto compete à autoridade, e como não tenho autoridade, posso dispensar-me dessa tarefa ingrata”. E muito tolo comentará de si para si “que coração generoso é esse, como lhe dói ver a maldade do próximo”. Certamente, há muita generosidade em doer-se alguém da perfídia do próximo. Mas haverá generosidade em fechar os olhos à evidência, para não sentir essa dor? Ah, como os Santos abriram e até escancararam os olhos a essas dolorosas evidências! Como lhes cortava o coração ver a malícia, a ingratidão, a perfídia, a lascívia dos homens! Quantos juízos encontramos, nas obras dos Santos, juízos severíssimos e tremendos, não só a respeito de um ou outro indivíduo nominalmente considerado, mas ainda a respeito de cidades, povos e países inteiros! Os Santos se doíam, mais do que ninguém, dessa realidade. Mas em vez de lhe fechar estupidamente os olhos, abriam pelo contrário os olhos para as misérias da terra e o coração para o Céu, em magníficos atos de reparação e desagravo a Deus. Como está longe da conduta dos Santos certo romantismo piegas com que tantas vezes nos defrontamos na vida! E como dói ver que essa estupidez romântica vem pregada em nome do Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando Nosso Senhor Jesus Cristo chamou os fariseus sepulcros caiados, o que fez senão juízo? E quando aconselhou que tomássemos cuidado com os falsos profetas e os lobos metidos em pele de ovelha, o que fez senão impor-nos à suspeita como importantíssimo meio para a nossa salvação?
Uma vítima da revolução francesa, passando por sob a estátua da liberdade, teve a exclamação famosa: “Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome”. Com quanto direito poderíamos dizer por nossa vez: “Ó caridade, quanta sandice e quanto crime em teu nome se tem praticado”.
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Mas, sobretudo, o que importa notar é que um observador sagaz não se improvisa. Que espécie de autoridade será quem esteve de tapa-olhos, ininterruptamente, durante todo o tempo em que foi súdito? Não é porventura quando se é súdito que se deve adquirir as qualidades de um chefe? A tal ponto é isto verdade, que todos os exércitos e todas as engrenagens das empresas comerciais, etc., têm sua linha fixa de promoções. Não valerá isto para nós? Ingênuos como crianças de berço até o dia em que não cai sobre os ombros uma função de responsabilidade, o que faremos quando depender de nós a defesa dos mais importantes interesses espirituais ou temporais, contra os lobos disfarçados na pele da ovelha?
Decididamente, renunciemos a toda esta pieguice. Ela só serve para prejudicar a Igreja, dando a entender que a descrição que seus adversários fazem do “carola”, tipo imbecil de um sentimentalismo romântico e estúpido, é produto genuíno de seu espírito. Sursum corda. Corações ao alto. Pieguismo não é bondade. Estupidez não é generosidade. Inocentes como as pombas, nem por isto deixemos de ser astutos com as serpentes. É Nosso Senhor que, em termos expressos, no-lo impõe. Queremos porventura ser melhores do que Ele?”

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