“A parte sã do catolicismo tomou conhecimento, possuída de um sentimento misto de surpresa e conforto, da interpelação dirigida ao santo padre por quatro cardeais a propósito de problemas de teologia moral suscitados pela exortação pós-sinodal
Amoris Laetitia. A solene interpelação, que restou ignorada pelo destinatário, consistiu nas
dubia referentes, basicamente, a duas questões: podem ou não os divorciados “recasados” civilmente receber os sacramentos da confissão e da eucaristia; há ou não há ações intrinsecamente más, ou seja, há normas morais absolutamente obrigatórias independentemente das circunstâncias?
O motivo da surpresa da parte sã do catolicismo diante da reação dos cardeais à revolução bergogliana é que os eminentes purpurados são eclesiásticos que, ao que consta, jamais manifestaram uma discordância quanto ao curso percorrido pela Igreja desde o Vaticano II. Aliás não seriam criados cardeais pelos papas da Igreja conciliar.
Quer dizer, são dignitários que aceitam, por exemplo, a
Gaudium et spes, documento conciliar que introduz uma mudança na doutrina da Igreja sobre a hierarquia de fins do matrimônio (o que, sem dúvida, favorece a ideia tão cara aos católicos modernos, de aceitar a possibilidade de reconstruir uma vida feliz após o fracasso de um primeiro casamento, esquecidos do dogma da indissolubilidade do vínculo). São cardeais que aceitam
Dignitatis humanae, a declaração conciliar sobre a liberdade dos cultos, que dá primazia à consciência errônea sobre a verdade objetiva. Declaração que escarnece o bem comum da sociedade representado pela unidade do povo cristão em torno da religião católica como sua alma. Declaração que, em germe, contém os erros flagrantes da exortação pós-sinodal ora impugnada.
São cardeais que aceitam do mesmo modo a nova exegese proposta pela
Dei Verbum, que nega a inerrância absoluta da Sagrada Escritura, restringe a divina inspiração bíblica às verdades salvíficas e adota a teoria protestante de uma única fonte bíblica da revelação. De maneira que, nesta perspectiva, os purpurados autores da interpelação contra o pontífice, em princípio, não são teólogos da tradição em sentido estrito.
Em suma, os interpelantes aceitam perfeitamente o concílio, o espírito do concílio, a reforma litúrgica, o ecumenismo, o espírito de Assis, a nova eclesiologia da
Lumen gentium, com a sua infeliz expressão
subsistit. A qual expressão também favorece os erros que consideram encerrados em
Amoris Laetitia, na medida em que diz que a Igreja de Cristo é constituída pelas igrejas cismáticas que há milênios aceitam as orientações da exortação de Francisco I.
De modo que o motivo da surpresa ou espanto é que os senhores cardeais sabem apontar os problemas doutrinários da exortação pós-sinodal sem, todavia, verem a relação dos mesmos com o Concílio Vaticano II, quando Francisco I, com toda razão, diz seguir o concílio e o caminho traçado por seus predecessores. É realmente desejável que os cardeais interpelantes verifiquem que há tal relação e se lembrem de que um pequeno erro no princípio se torna grande no fim. Se é que se pode dizer que os erros do Vaticano II são pequenos!
Com efeito, acode-me à memória a história do rei Acab. Diz o III livro dos Reis que quando o Senhor quis induzi-lo em erro consultou todo o exército do céu e perguntou quem enganaria a Acab. Então o espírito maligno se adiantou e disse: “Eu o enganarei”. E o Senhor lhe disse: “De que modo?” E ele respondeu: “Eu sairei, e serei um espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas”. E o Senhor disse: “Tu o enganarás, e prevalecerás: Sai, e faze-o assim.”
O Doutor Santo Agostinho comenta a passagem bíblica dizendo que “era justo que Acab, que não tinha crido no Deus verdadeiro, fosse enganado pelo falso.”
O que quero dizer é que todos os teólogos que desprezaram ou relativizaram o alto alcance da
Pascendi de São Pio X e não quiseram ouvir a
Humani generis de Pio XII, mas aderiram à
Nouvelle Theologie e constituíram a “linha média” da Igreja pós-conciliar, e motejaram dos católicos da tradição como uns estouvados, uns exagerados e radicais que não sabiam interpretar bem o Vaticano II, e hoje estão perplexos com a desenvoltura de Francisco I, foram merecidamente enganados pelo espírito mentiroso por uma especial permissão divina, justamente por terem desprezado, por exemplo, o alcance do magistério tradicional e menoscabado daqueles que, como Dom Lefèbvre e Dom Antonio de Castro Mayer, (a quem acusavam de ser rebeldes e cismáticos, as mesmas injúrias que hoje são assacadas contra eles) diziam que as inovações do Vaticano II levariam à ruína da Igreja.
Sem dúvida, a linha média, que hoje se sente enganada e escandalizada com as atitudes de Francisco I, paga o preço da aliança que fez com a ala mais radical da
Nouvelle Theologie para vencer, nos embates do concílio Vaticano II, os católicos que queriam permanecer fiéis aos anátemas lançados pelos grandes papas contra o liberalismo e o modernismo. Na verdade, queriam o
aggiornamento. Mas agora não querem colher seus frutos mais amargos.
Bem sabemos: Nosso Senhor não abandona a sua Igreja. Não permitirá que o espírito mentiroso chegue a destruí-la. Serve-se dele apenas para castigar os infiéis. Este é o nosso conforto.
De modo que cremos que Deus Nosso Senhor, por intercessão da Imaculada Conceição, poderá conceder a todos os católicos da linha média, que hoje estão escandalizados, a graça de que cessem de ouvir os falsos profetas inspirados pelo espírito mentiroso, tomem consciência dos problemas não só da exortação
Amoris Laetitia mas também dos “pequenos erros” do Vaticano e de todas as problemáticas reformas pós-conciliares.
Mas se acolherem essa graça terão de sofrer como Miqueias, o profeta verdadeiro desprezado por Acab. Miqueias foi condenado à cadeia e a ser sustentado com o pão de tribulação e a água de angústia. Semelhante sorte parece reservada aos quatro cardeais, pelo que disse há pouco o presidente da Rota Romana.
Tenho esta esperança. Rogo a Deus pelos cardeais interpelantes.
Oxalá possa alguém escrever sobre eles um livro semelhante àquele que há muitos anos atrás foi escrito por Dr. Ricardo Dip: “Monseigneur Marcel Lefèbvre: rebelde ou católico?”
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