quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Sobre o demônio

“Na vida da espécie humana, o princípio diabólico tem sua própria história. Sobre esta questão, existe séria literatura acadêmica – não relativa, contudo, às últimas décadas. No entanto, são as últimas décadas que lançam nova luz sobre os dois séculos passados. A era do Iluminismo Europeu (começando com os Enciclopedistas Franceses do século XVIII) solapou no interior do homem a crença na existência de um demônio pessoal. O homem instruído não pode acreditar na existência de um tal ser antropomórfico hediondo “com um rabo, garras e chifres” (segundo Zhukovsky), jamais visto por alguém mas retratado em baladas e quadros. Lutero ainda acreditava nele e até arremessava-lhe imundícies, mas os séculos mais recentes rejeitaram o demônio, e ele gradualmente “desapareceu” e apagou-se como um “preconceito ultrapassado”.
Mas foi precisamente então que a arte e a filosofia nele se interessaram. Ao europeu esclarecido só havia sobrado o casaco de satanás, com o qual, fascinado, ele começou a se vestir. Ardia o desejo de descobrir mais sobre o demônio, discernir sua “verdadeira forma”, conhecer seus pensamentos e desejos, “transformar-se” nele ou pelo menos andar entre os homens dele disfarçado...
Assim foi que a arte começou a imaginá-lo e retratá-lo, enquanto a filosofia tratava de sua justificação teórica. O demônio, é claro, “não teve sucesso”, porque a imaginação humana é incapaz de contê-lo, mas na literatura, música, e pintura começou uma cultura de demonismo. A partir do começo do século XIX, a Europa tem estado fascinada com suas formas antidivinas; aparece o demonismo da dúvida; negação; orgulho; rebelião; desapontamento; amargura; melancolia; desprezo; egoísmo; e até mesmo tédio. Os poetas mostram Prometeu, o Filho da Manhã, Caim, Don Juan, e Mefistófeles.
Byron; Goethe; Schiller; Chamisso; Hoffmann; Franz Liszt; e mais tarde Stuck, Baudelaire e outros apresentam uma galeria inteira de demônios ou homens e humores demoníacos. Ademais, esses demônios são inteligentes, espirituosos, instruídos, engenhosos, e temperamentais, numa palavra, charmosos e evocando simpatia, ao passo que os homens demoníacos são a encarnação da “angústia do mundo”, do “protesto nobre” e de certa “consciência maior revolucionária”.
Simultaneamente a doutrina mística defendendo que existe um “princípio negro”, até em Deus, foi ressuscitada. Os Românticos Alemães encontraram palavras poéticas em favor do “despudor inocente”, e o Hegeliano de Esquerda Max Stirner aparece abertamente pregando a autodeificação do homem e o egoísmo demoníaco. A negação de um demônio pessoal é gradualmente substituída pela justificação do princípio diabólico...
O abismo que se escondia além disso foi visto por Dostoievsky. Ele o identificou e com profético alarme procurou os meios de sobrepujá-lo durante toda sua vida.
Friedrich Nietzsche também se aproximou desse abismo, foi atraído por ele, e o exaltaria. Suas últimas palavras, A Vontade de Poder, O Anticristo, e Ecce Homo, contêm direta e aberta propaganda do mal...
Nietzsche designa a totalidade dos sujeitos religiosos (Deus, a alma, virtude, pecado, o além, verdade, vida eterna) como um “monte de mentiras, nascidas de maus instintos das naturezas doentias e daninhas no sentido mais profundo.” “A idéia cristã de Deus” é para ele “uma das idéias corruptas criadas na terra.” Aos seus olhos todo o Cristianismo é apenas uma “fábula grosseira de um taumaturgo e salvador”, e os cristãos “o partido dos ninguéns e idiotas rejeitados.”
O que ele exalta são “cinismo” e despudor, “o mais elevado que se pode alcançar na terra.” Ele invoca a fera no homem, o “animal superior” que deve ser libertado, sejam quais forem as conseqüências. Ele exige o “homem selvagem”, “cruel” com a “barriga feliz”. Tudo que é “cruel, a fera não disfarçada, o criminoso” o arrebata. “Só há grandeza onde houver um grande crime.” “Em cada um de nós o bárbaro e a besta selvagem afirmam-se a si mesmos.” Tudo na vida cria uma irmandade de homens – idéias de “culpa, castigo, justiça, honestidade, liberdade, amor etc” – “deveriam ser removidas da existência completamente.” “Avante”, ele exclama, “blasfemadores, imoralistas, independentes de todos os tipos, artistas, judeus, jogadores – todas as classes rejeitadas da sociedade!”...
E não há para ele maior alegria do que ver “a destruição dos melhores homens e seguir como, passo a passo, eles chegam à destruição”... “Conheço meu destino”, ele escreve,
Um dia meu nome será associado com a lembrança de algo assustador, uma crise tal que jamais se viu sobre a terra, a mais profunda colisão de consciência, uma sentença conjurada contra tudo que se tem acreditado, procurado, consagrado até hoje. Não sou um homem, sou dinamite.
Desta forma a justificação do mal encontrou suas fórmulas teóricas perfeitamente diabólicas, faltando apenas colocá-las em prática. Nietzsche encontrou seus leitores, discípulos, e admiradores; eles adotaram sua doutrina, combinando-a com a doutrina de Karl Marx, e levaram esse plano à execução 30 anos atrás.
“Demonismo” e “Satanismo” não são a mesma coisa. Demonismo é um assunto humano, enquanto Satanismo é um assunto do abismo espiritual. O homem demoníaco entrega-se a seus instintos selvagens e pode ainda arrepender-se e converter-se, mas o homem no qual, pelas palavras do Evangelho, “Satanás entrou”, é possuído por uma força estranha e sobre-humana e torna-se ele mesmo um demônio em forma humana.
Demonismo é um escurecimento espiritual transitório, sua fórmula sendo vida sem Deus; Satanismo é a escuridão total e final do espírito, sua fórmula a deposição de Deus. No homem demoníaco revolta-se o instinto sem rédeas apoiado pela fria razão; o homem satânico age como instrumento de outrem fazendo o mal, capaz de saborear sua ação repulsiva. O homem demoníaco gravita ao redor de Satanás: colaborando, festejando, sofrendo, fazendo pactos com ele (conforme a tradição popular), torna-se gradualmente o domicílio conveniente do demônio; o homem satânico perdeu-se a si mesmo e tornou-se o instrumento terreno de uma vontade diabólica. Quem jamais chegou a ver tais pessoas ou, vendo-as, não as reconheceu, não conhece o mal primordial aperfeiçoado e não tem entendimento do elemento verdadeiramente diabólico.
Nossas gerações estão dispostas diante de manifestações terríveis e misteriosas desse elemento e até hoje jamais resolveram expressar sua realidade de vida com as palavras certas. Poderíamos chamar esse elemento “fogo negro”, ou defini-lo como inveja eterna; ódio insaciável; banalidade militante; mentiras despudoradas; descaramento absoluto e desejo absoluto por poder; alegria com a ruína dos melhores homens, e Anticristianismo. O homem que sucumbiu a esse elemento perde a espiritualidade, o amor, e a consciência; dentro dele começa a degeneração e a dissolução. Ele se entrega ao vício consciente e à sede de destruição; e termina em sacrilégio desafiador e tormento humano.
A simples percepção desse elemento diabólico provoca, em uma alma saudável, repulsa e horror que podem se transformar em doença corporal genuína, um específico “desfalecimento” (o espasmo do sistema nervoso simpático, disritmia nervosa, e doença psicológica – que pode também levar ao suicídio). Os homens satânicos são reconhecidos pelos seus olhos, pelo seu sorriso, sua voz, suas palavras e atos. Nós, Russos, temo-los visto ao vivo e a cores; sabemos quem são e de onde vêm. Contudo, os estrangeiros até agora não entenderam esse fenômeno e não o querem entender, pois lhes traz julgamento e condenação.
E até este dia, certos teólogos reformistas continuam escrevendo sobre “a utilidade do demônio” e simpatizando com sua moderna insurreição.”
(Ivan Ilyin, On the Devil)