“Para entender perfeitamente o Evangelho, é preciso que em primeiro lugar conheçamos o ambiente histórico que rodeia a pessoa do Salvador, antes de tudo, as tendências religiosas e políticas que agitavam aquela época. Havia então entre os judeus, além de algumas seitas de menor importância, dois partidos, nos quais se materializavam, como em dois pólos, tanto as energias nacionais do povo judeu como sua mentalidade religiosa: os fariseus e os saduceus.
Prescindamos dos saduceus que mais tarde nos vão ocupar, assim como vamos passar em silêncio a classe dos escribas, mencionados amiúde juntamente com os fariseus; não constituindo um partido político, mas um grupo profissional, os escribas eram os que sabiam escrever e ler e explicavam a Lei de Moisés, como o expressa seu nome e ainda seu título de “rabino”. O que não exclui que a maioria deles politicamente se declarassem a favor dos fariseus.
Já o nome de “fariseus”, que significa os segregados, marca o rumo do partido. Segregando-se da massa que vivia em ignorância religiosa e política, os fariseus aspiravam à realização da Lei de Moisés e das “tradições dos maiores”, as quais desgraçadamente às vezes não eram mais que uma deformação da Lei.
Pela primeira vez aparece o nome dos fariseus em meados do segundo século na época do Macabeu Jônatas (160-143). É o famoso historiador judeu Flavius Josefus quem os reduz a esse tempo (Ant. XIII 5, 9), sendo provavelmente os predecessores deles os chamados “assideus” (piedosos), que eram homens dos mais valentes de Israel e zelosos todos da Lei (I Mac. II, 42), mas que foram perseguidos por Alcimo (I Mac. VII, 16).
Já sob o governo de João Hircano (135-104) os fariseus conseguiram chegar ao poder, mas sem chegarem a se manter; ao contrário, o tirano Hircano, depois de submeter os idumeus e derrubar o templo dos samaritanos no monte Garicim, renegou inteiramente os costumes de seus pais, adotando uma conduta contrária à Lei; o que provocou a resistência encarniçada dos mesmos fariseus que antes foram seus mais valentes companheiros de armas.
O segundo sucessor de João Hircano, Alexandre Janeu, tentou vencer definitivamente a resistência dos rebeldes, desencadeando uma perseguição terrível contra os fariseus, os quais não só sucumbiram como acabaram por ser objeto das torturas mais requintadas já que oitocentos deles foram crucificados no momento em que o rei celebrava a festa triunfal. Mas as vítimas se vingaram, não dando trégua ao triunfador, nem de dia nem de noite, de modo que o rei atormentado de remorsos antes de sua morte aconselhou sua mulher Alexandra a reconciliar-se com seus adversários para não perder o trono. A viúva Alexandra (76-67), acedendo ao desejo do moribundo, chamou os fariseus ao governo, entregando ao mesmo tempo a dignidade de sumo sacerdote a seu próprio filho Hircano II. Esse Hircano é o primeiro sumo sacerdote que dependia do partido dos fariseus.
Devem, pois, os fariseus a chegada ao poder a seu inconteste heroísmo; a sua valentia nas batalhas; a sua tenacidade e fanatismo. Não é mister acentuar que a auréola de heróis lhes valeu um prestígio extraordinário aos olhos do povo judeu. Portanto não é estranho se alguns chamam os fariseus de nacionalistas, tradicionalistas, conservadores, patrióticos, zelosos, enquanto que os saduceus mais ou menos correspondem aos liberais e maçons de nossa época. O ideal dos fariseus era reconstruir e conservar a nação sobre o fundamento das tradições e costumes dos pais. Daí sua luta contra os estrangeiros, os Romanos, que desde o ano 63 dominavam a Palestina. Daí também sua trágica inimizade a Jesus, o verdadeiro Salvador de sua gente. Não cabe dúvida que Jesus teria podido ganhar os fariseus, se tivesse aderido às aspirações nacionais deles. Mas como então se teria realizado o reino de Jesus Cristo? Em lugar do Messias do gênero humano, teria resultado só um Messias político da nação judia. Precisamente por suas falsas idéias políticas, nacionalistas e racistas chocaram-se os fariseus com o Messias, pois esperavam com todas as fibras do coração, e ainda continuam esperando hoje em dia, a reunião dos dispersos restos do povo judeu.
Além de cultivarem um extremo nacionalismo, os fariseus se enredavam em um tradicionalismo religioso não menos extremo, que cedo ou tarde tinha que provocar um conflito com o Senhor. As tradições fomentadas pelos fariseus, por vários conceitos não estavam de acordo com a Lei de Moisés nem com os demais profetas; ao contrário, muitas delas lutavam com a religião legítima de Israel. Quantas vezes Jesus Cristo tentava persuadir seus inimigos cegos de que as tradições às quais se aferravam estavam em luta com a religião que não consiste em mil preceitos sutis mas em “espírito e vida” (João VI, 63)! Aqui se manifesta a vinculação funesta com os escribas que não se cansavam de inventar novos preceitos, novas fórmulas, novas cargas para os ombros da pobre gente, sem que eles mesmos as tocassem com a ponta do dedo (Luc. XI, 46).
Note-se bem: Não era a escassez ou falta de fé em que consistia o pecado dos fariseus, mas antes a ampliação e exageração da fé mediante as tradições. Contrariamente aos saduceus criam na imortalidade da alma, na vida eterna, na existência dos anjos, na liberdade da vontade humana; o que os caracteriza como a nata do povo judeu. Que tragédia da sorte! Considerando-se a si mesmos como os filhos legítimos da fé de Abraão, desfiguravam a fé a expensas do espírito ao ponto que não compreendiam mais a doutrina da vida interior que Jesus pregava.
É o Evangelista Marcos o que no sétimo capítulo de seu Evangelho destaca de maneira claríssima o uso supersticioso que fazem os fariseus das tradições, e ao revés o descuido da observância dos mandamentos de Deus que cometiam sem pestanejar: “Com efeito, os fariseus e todos os judeus, apegando-se à tradição dos antigos, não comem sem lavar cuidadosamente as mãos; e, quando voltam do mercado, não comem sem ter feito abluções. E há muitos outros costumes que observam por tradição, como lavar os copos, os jarros e os pratos de metal” (Marc. VII, 3-4).
Como, por exemplo, os fariseus degeneravam o sábado! Quando, um dia de sábado, os discípulos, tendo fome, começaram a colher espigas e comer os grãos; ou quando o Senhor curou no dia de sábado um homem que tinha seca a mão, consideravam tal fato como obra servil e pecado mortal. Na verdade, quem crê que o homem foi feito para o sábado, e não o sábado para o homem; quem em dia de sábado retira da vala uma ovelha e não um homem, ignorando que um homem vale mais que uma ovelha; quem não se deixa ensinar nem sequer por “argumenta ad hominem”, tal homem não se pode converter.
É de estranhar, pois, que os fariseus pagassem dízimos até da hortelã, e do endro, e do cominho (Mat. XXIII, 23), e que levassem as Palavras da Lei de Moisés em filactérios ou tiras de pergaminho, nas quais estavam escritas sentenças da Lei mosaica (Mat. XXIII, 5)?
Os pergaminhos cuidadosamente dobrados e colocados em pequenas caixas de couro se atavam à frente e ao braço esquerdo, em cumprimento das mal interpretadas palavras: “Será isso para ti como um sinal sobre tua mão, como uma marca entre os teus olhos, a fim de que tenhas na boca a lei do Senhor” (Ex. XIII, 9), assim como as franjas que levavam os fariseus nas quatro extremidades do manto, traem sua origem de Num. XV, 38-39: “Dize aos israelitas que façam para eles e seus descendentes borlas nas extremidades de suas vestes, pondo na borla de cada canto um cordão de púrpura violeta. Fareis essas borlas para que, vendo-as, vos recordeis de todos os mandamentos do Senhor, e os pratiqueis, e não vos deixeis levar pelos apetites de vosso coração e de vossos olhos que vos arrastam à infidelidade.”
De tal formalismo não teríamos que falar, se não tivesse sido acompanhado de uma vaidade mais que arrogante. Os fariseus são esses “que se vangloriavam como se fossem justos, e desprezavam os outros” (Luc. XVIII, 9); são “os hipócritas, que de propósito se põem a orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens” (Mat. VI, 5), e “que desfiguram seus rostos, para mostrarem aos homens que jejuam” (Mat. VI, 16) e “todas suas obras as fazem com o fim de serem vistos pelos homens” (Mat. XXIII, 5).
Todavia hoje vibra em nossos ouvidos o ai lastimoso com que Jesus anatematizou o farisaísmo: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Devorais as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso, sereis castigados com muito maior rigor. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Percorreis mares e terras para fazer um prosélito e, quando o conseguis, fazeis dele um filho do inferno duas vezes pior que vós mesmos. Ai de vós, guias cegos! Vós dizeis: Se alguém jura pelo templo, isto não é nada; mas se jura pelo tesouro do templo, é obrigado pelo seu juramento.” (Mat. XXIII, 14-16).
Basta com isso! Deveras; nunca havia entre homens mais antagonismo que o que separava Jesus dos fariseus; jamais as divergências de opinião foram tão inconciliáveis como então na Palestina. O choque foi inevitável; mas a Divina Providência deixou o primeiro triunfo aos fariseus, para reservar o triunfo final à causa de Jesus Cristo. E não se esqueça jamais: o que abriu caminho mais largo à verdade cristã foi fariseu: São Paulo.
Os fariseus morreram. Com a queda de Jerusalém, no ano 70, caiu para sempre o sonho dourado dos fariseus da Palestina. Milhares e milhares dos que assassinaram Jesus Cristo morreram cravados nas cruzes com que o vencedor romano havia rodeado a cidade santa; o resto foi vendido no mercado de escravos de Hebron. Mas não morreu o farisaísmo. Vive todavia o formalismo dos fariseus no Talmude e outros livros judeus; vive seu materialismo religioso, seu ódio a Jesus Cristo e seu fanatismo. O “Sionismo” que está levando os judeus à Palestina não é mais que o último ressaibo do farisaísmo.
E o farisaísmo entre os cristãos? Não falemos desse triste capítulo. Sem dúvida: onde domina um formalismo ou materialismo religioso, ali floresce o farisaísmo. E assim como os fariseus se consideravam como a flor do judaísmo, os fariseus de hoje se têm por bons cristãos.”
(Mons. Juan Straubinger, Los Fariseos)
El martirio según el martirologio
Há 23 horas