domingo, 20 de dezembro de 2015

A primazia da sociedade sobre o indivíduo

“Então o que vem primeiro, o indivíduo ou a sociedade? Essa é uma questão muitas vezes refletida, e mal refletida. Há uma confusão de planos, devida, em geral, à intervenção da imaginação num campo onde só a inteligência pode desenvolver satisfatoriamente o assunto. Por certo, na ordem entitativa ou ôntica, é primeiro o indivíduo, pois este goza de subsistência, e a sociedade não. Disto, sem dúvida, se chegou equivocadamente à conclusão de que a primazia do indivíduo é absoluta, e que, por conseguinte, a sociedade, na ordem moral ou prática, é unicamente o meio para que aquele alcance seus fins próprios. Como reação, por outra parte, e procurando evitar as conseqüências nocivas que essa tese tem para a sobrevivência da sociedade, esta foi concebida como se fosse um todo substancial, cujos elementos ou partes integrais seriam os indivíduos, e que teria vida própria, autônoma, regulada por leis de índole biológica, semelhantes às que regem a vida dos organismos vegetais ou animais.
Uma das premissas mais reiteradas para sustentar a primazia da pessoa sobre a sociedade é aquela em que se afirma que não se pode subordinar um ser substancial a um ser acidental, por ser aquele ontologicamente superior. É neste argumento que se joga o papel ilegítimo da imaginação: pensa-se em um ser substancial e em um ser acidental como se fossem duas entidades fisicamente diversas, uma superior à outra (algo como: aqui está o indivíduo, ente subsistente, e aí o conjunto de relações entre indivíduos ao qual chamamos sociedade; como conceber, então, a subordinação do indivíduo a esse conjunto de relações?).
Se fossem fisicamente diversas ambas as entidades, isto é, se a sociedade, como ente acidental, tivesse uma existência alheia à existência dos homens que a integram, teria, quiçá, sentido argumentar isso. Mas tal perspectiva é ininteligível se pensarmos o que é substância e o que é acidente; nenhum acidente tem existência diversa à da substância à qual pertence, pois sua realidade é a realidade da substância, à qual simplesmente modifica ou determina. Não há diversidade entitativa entre a maçã e sua cor, entre um indivíduo e sua estatura, entre uma mulher e a relação de maternidade que a une com seu filho. Ademais, devemos ter em conta que a perfeição de um sujeito consiste no desenvolvimento ou desdobramento de seu ser acidental: a sabedoria é a perfeição do sábio, a arte do artista, a dureza do aço, a virtude moral do homem. Por isso, podemos afirmar, sem temor de cair em aberrações, que o homem deve ordenar-se à virtude, que o sábio deve ter a sabedoria como fim de sua existência, pois nem a virtude nem a sabedoria são realidades alheias ou inferiores à realidade do homem que é virtuoso ou sábio.
Também vale notar que são muitos e diversos os acidentes que podem determinar um sujeito. Alguns o aperfeiçoam só sobre um aspecto particular, como, por exemplo, o tamanho maior ou menor de um animal; outros são aperfeiçoados em um sentido mais profundo e universal, como a sabedoria de um homem. Pode acontecer, além disso, que a aquisição de uma perfeição implique noutras determinações, que se dão de um modo conseqüente e subsidiário, como quando a sabedoria de um homem o leva a ter relações com outros sábios (o que se busca como fim principal, não obstante, é a sabedoria, o que faz com que a relação buscada subsidiariamente não seja qualquer uma, senão a com os sábios).
Isto ocorre em toda sociedade humana: o homem tem como fim principal sua perfeição de homem, que é um fim comum a todo membro de sua espécie; além disso, as formas que tal perfeição pode ter em outros excedem suas possibilidades de realização em um indivíduo. O homem constitui sociedade ao buscar uma perfeição que é por natureza comum a ele e aos outros, e ao compartilhar, mediante a comunicação com esses outros, os distintos modos da perfeição humana que nele, individualmente, não existem nem podem existir.
A sociedade é, pois, um convergir ordenado das pessoas à sua perfeição comum, e um completar-se entre elas mediante a comunicação das diversas e multiformes participações particulares nessa perfeição. É nesse sentido que a sociedade tem primazia sobre o indivíduo, subordinando-se esse de modo natural àquela por estar aí sua perfeição.
O indivíduo tende à sua perfeição - qualquer que seja o aspecto que dela se considere - para participar dela. Precisamente por isso, tal tendência é o fundamento da ordem social, é o princípio da convergência de muitos para um fim, da união de diversas pessoas na participação na mesma perfeição. Por isso, a sociedade é sempre um todo do qual o indivíduo é uma parte; e o todo prevalece sempre sobre suas partes: na ordem da perfeição natural, a sociedade política é superior a seus membros, e se bem que esses tendam também a outra perfeição, a sobrenatural, em razão da qual estão totalmente subordinados àquela, essa tendência os constitui, por sua vez, parte de outra sociedade, a Igreja, que nesta ordem também tem primazia sobre seus membros. Isso se pode dizer, com certeza, de qualquer sociedade de homens, embora se veja mais claramente na sociedade política e na sociedade sobrenatural, por elas serem perfeitas como sociedades, isto é, pelo indivíduo pertencer a uma delas por tudo que é, e não sob apenas uma determinada dimensão de sua existência.
Pretender que o indivíduo não seja, em sentido estrito, parte da sociedade que integra, implica sustentar que é esta – os demais indivíduos – que deve subordinar-se àquele para servi-lo e viver em função de seus fins particulares. É totalmente impróprio, por isso, afirmar que a sociedade é para o indivíduo, pois, mesmo que o fim da sociedade seja, de fato, o bem do indivíduo, este bem é universal e comunicável, não sendo, portanto, circunscrito a nenhuma forma individual ou particular de participação.
A sociedade, por conseguinte, considerada em sua relação com os que a compõem, não é um todo integral, no sentido de que seus membros sejam apenas partes quantitativamente diferentes, pois embora seja uma soma de homens, não o é essencialmente; ela não está definida como um mero agregado de indivíduos. As pessoas, por exemplo, que estejam num elevador, por mais apertadas que se encontrem, não constituem por isso uma sociedade; mas se o elevador se decompõe e cai entre os pisos, podem começar a ser, caso os afetados se organizem entre si para buscarem um meio de sair do desastre.
A sociedade é o que se denomina um todo potestativo, pois suas partes realizam de forma diversa a perfeição que radica na natureza humana. É esse bem ou perfeição o princípio da ordem social; se se prescinde dele, não há verdadeira sociedade, não há nada que obrigue as partes a respeitarem o todo. Quando existe verdadeira sociedade, portanto, a relação das partes com respeito a ela é a que há entre quem participa e o participado, havendo sempre primazia natural deste por aquele. É um todo potestativo moral – não substancial, obviamente, como é um organismo vivo – constituído pela operação das partes em ordem a um fim comum.”
(Juan Antonio Widow, El Hombre, Animal Político)

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