sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

A ação descristianizadora do Liberalismo (II)

“Nosso mundo está atravessado pelo desconcertante paradoxo de que a filosofia que inspira o liberalismo é determinista, negadora do livre arbítrio e desconhecedora do caráter pessoal do indivíduo humano. Por isso, não é de se estranhar que a maioria dos que combatem a pena de morte defenda a licitude do aborto e da eutanásia. O juízo condenatório de Pio IX na Quanta cura e no Syllabus foi reiterado e sistematizado com precisão admirável no plano doutrinal por Leão XIII, sobretudo em suas encíclicas Immortale Dei e Libertas, que mostram o liberalismo como a colocação em prática do imanentismo naturalista e, por sua vez, advertem que o liberalismo leva ao ateísmo.
Leão XIII insistiu que vem do ateísmo o Estado conceder a todas as religiões iguais direitos. Seu juízo corresponde plenamente à intenção profunda da concessão, pelo Estado liberal, do direito que propugnava Spinoza de deixar que cada um pensasse o que quisesse e dissesse o que pensasse como caminho para que o poder político se constitua na única fonte de idéias morais. Na verdade, estamos vendo isso na vida política interna dos estados e na vida internacional: emanados da ONU e da UNESCO, os critérios e as normas com que se pretende evitar o contágio da AIDS ou controlar a explosão demográfica no mundo dão por pressuposto como algo óbvio que dos poderes estatais ou internacionais não se deve esperar nem se pode aceitar nenhuma normatividade moral de origem religiosa, procedente de qualquer igreja ou confissão.
Deve-se reconhecer que desde a ONU, como desde os poderes políticos estatais, nem se espera nem se aceitaria um juízo moral vindo do mundo religioso. Sociológica e culturalmente, nos encontramos com a trágica exclusividade do islamismo em aparecer como uma resistência explícita à secularização do laicismo em nossa vida coletiva. Se se tivesse atentado para os processos reais que presenciamos e que levaram à descristianização da cristandade ocidental, teríamos que reconhecer dois fatos importantíssimos e de significado decisivo:
Em primeiro lugar, a injustiça sectária que fez evoluir o Estado separado da Igreja até o Estado laicista opressor do direito à presença da fé na educação e na vida social, que não é algo contraditório com os princípios do liberalismo que a Igreja condenou, nem acidental seu dinamismo profundo. Em segundo lugar, a hegemônica influência do sectarismo anticristão nos meios de comunicação social e em todos os âmbitos culturais que conformaram a mentalidade contemporânea antiteísta é algo não só coerente com os princípios do liberalismo, mas algo intentado por "princípios" explicitamente afirmados como a finalidade do próprio liberalismo desde suas fontes filosóficas originárias e capitais.
Ao preparar o envio da palestra pronunciada em Barcelona no último congresso da Cidade Católica, me parece oportuno acrescentar umas notas sobre a filosofia profunda dos nacionalismos, a modo de homenagem ao eminente pensador Rafael Gambra, recentemente falecido, e que durante tantos anos havia colaborado ativamente mantendo a presença do pensamento tradicional em tantos âmbitos da vida espanhola.
Em um iluminador trabalho intitulado Patriotismo e nacionalismo, publicado na revista barcelonesa Cristandade (núm 160, novembro de 1950, pp. 507-508), Rafael Gambra formulou uma análise profunda e fundamental sobre a gênese e o sentido da ideologia nacionalista que me parece oportuno citar literalmente com alguma extensão:
"Para os iluministas, as diversas religiões... eram visões grosseiras, representações populares de uma verdade mais profunda, que é a compreensão racional, científica, do universo. E como complemento deste novo gnosticismo vulgarizado dominou, no ambiente das Luzes, uma filosofia da história segundo a qual vai-se operando lentamente um processo de racionalização no qual a razão vai abrindo caminho através das névoas da ignorância, da superstição e da crença. [...]
"A atitude pessoal do enciclopedista, congruente com esta concepção, haveria de ser idêntica à do antigo sofos grego, que foi herdada pelo gnosticismo: um aristocrático desdém pelas perecíveis crenças do povo e do meio ambiente, e a passividade meramente espectadora do "iniciado" que espera o que necessariamente e no seu devido tempo há de suceder.
"No entanto, no seio do Iluminismo, surgiu uma voz que, se participante do espírito geral do movimento, era dissidente com respeito à filosofia da história... foi a voz de J. J. Rousseau. Para o autor do Emílio, o advento da era racional da humanidade não há de vir no seu devido tempo, em um lento mas necessário abandono dos ídolos, porque a irracionalidade não é meramente um estrato prévio que se transformará em Iluminismo, mas é a causa do mal, do único mal possível, origem da perversão do homem, naturalmente bom... é preciso, em conseqüência, destruir essa sociedade para, sobre ela, edificar a nova sociedade racional, na qual o homem, livre destas influências deletérias... recupere o máximo possível de liberdade, e com isso de espontânea inocência.
"Então surge de um modo explícito o espírito revolucionário, por oposição e em contraste com o plácido espírito enciclopedista que, simplesmente, esperava a revolução. [...]
"Esta organização da sociedade sobre bases racionais a partir de uma ruptura com o passado deveria realizar-se, para ser lógica, sobre a sociedade universal, ou ao menos sobre um ideal universalista, antinacional.
"Entretanto, contra a lógica interna do sistema, o constitucionalismo decimonômico admitiu e se aplicou às nacionalidades existentes, estabelecendo-se para cada nação uma Constituição racional e definitiva que tomava como objeto e qualificativo, precisamente, o nome da nacionalidade. Então surge um novo e estranho sentimento que, como o antigo patriotismo, representa uma adesão afetiva à própria nação, mas que não pode mais se chamar de "patriotismo" porque renega a obra dos pais e antepassados, e se funda sobre uma ruptura com seu mundo e seus valores. Este sentimento é o nacionalismo".
Na continuação, Gambra assinala duas características do nacionalismo como "nova força espiritual do mundo moderno": sua natureza teórica diante da meramente afetiva e existencial do patriotismo... e sua absolutidade.
"Enquanto o patriotismo pode ser um sentimento condicionado e hierarquizado... no nacionalismo a razão de Estado é causa suprema e inapelável, e a nação ou Estado, hipostasiados, comunidade abstrata, constituem uma instância superior sem ulterior recurso".
O fundamentado juízo de Rafael Gambra responde a um conhecimento autêntico das bases filosóficas e os condicionamentos culturais em que se gestou a doutrina nacionalista: o idealismo filosófico, elaborado no contexto cultural do Romantismo alemão. Nesta nota de homenagem a Gambra, não farei mais que enfatizar os traços característicos deste pensamento no doutrinário do nacionalismo catalão. Enric Prat de la Riba, em seu decisivo manifesto La nacionalitat catalana, afirma:
"Descentralização, autogoverno, federalismo, estado composto, autonomismo, particularismo, sobem com o astro novo, mas não o são. Uma Catalunha livre poderia ser uniformista, centralizadora, democrática, absolutista, católica, livre-pensadora. Unitária, federal, individualista, estatista, autonomista, imperialista, sem deixar de ser catalã. São problemas internos que se resolvem na consciência e na vontade de um povo, como seus equivalentes se resolvem na alma de um homem, sem que o homem e o povo deixem de ser o mesmo homem e o mesmo povo pelo fato de passar por estes diferentes estados".
Não posso deixar de recordar a indignação com que lia este texto de Prat de la Riba o padre Orlandis, ao dar-mo a conhecer. Contém um juízo desorientado e desorientador que explica, provavelmente, muitas incoerências internas e debilidades nas posturas políticas que vêem nisto uma inspiração de suas atitudes mas, com sua vacuidade e inconsistência, o significativo parágrafo de Prat de la Riba é coerente com a inspiração filosófica que revela ao escrever "a nacionalidade é um 'Volksgeist', um espírito social ou público".
Para os sistemas idealistas em que se plasmaram estes conceitos, este "espírito do povo" é uma mais próxima e profunda expressão do absoluto que a fé ou o culto religioso. Embora talvez Prat de la Riba não fosse plenamente consciente disso, havia-se certamente contaminado e impregnado daquelas deletérias concepções filosóficas.
Explica-se assim que, para negar que a "unidade católica" possa ser admitida como explicação da existência histórica da Espanha, afirme que "é um contra-senso inexplicável fazer da religião católica, que é por sua natureza universal, um elemento de diferenciação dos povos. Por sua origem, por seu fim, por sua doutrina e por sua missão social, a religião católica é incompatível com a ação nacionalizadora que se lhe atribui".
Poderíamos observar aqui o caráter abstrato e, no fundo, racionalista, que atribui à catolicidade da Igreja, que sempre, ao longo de sua história, assumiu e se compenetrou na vida histórica dos povos, de tal maneira que não só os pensadores católicos, apologistas da fé e da Igreja nos distintos povos, mas a própria autoridade hierárquica da Igreja falou freqüentemente e reconheceu secularmente sua presença geradora de tradição católica nos povos.
Faz pouco tempo, João Paulo II chamou a Espanha de "evangelizada e evangelizadora", e nunca a Igreja deixou de proclamar-se "geradora maternal" da vida coletiva e da tradição de povos como Itália, Irlanda, Polônia, França ou Bélgica. A Santa Sé deu o título de Católica à Coroa espanhola, de Cristianíssima à Coroa francesa, de Fidelíssima à Coroa portuguesa, ou de Apostólica à Coroa da Hungria.
O pensamento implícito do estranho juízo de Prat de la Riba se põe mais gravemente de manifesto se continuamos a leitura do parágrafo em que acaba por negar a possibilidade de que a Igreja católica exerça uma ação formadora da tradição de um povo. Escreve Prat de la Riba:
"Causa de individualização social só poderiam ser as religiões antigas, as religiões naturais, que nasciam em cada povo como os outros elementos da vida popular, como o direito, a língua. Não o poderá ser a religião de todas as nações e línguas".
A extravagância destas afirmações, desenfocadas e errôneas, põe também de manifesto que Prat de la Riba não era consciente de que, na filosofia inspiradora do contemporâneo nacionalismo revolucionário, a negação ou total esquecimento da transcendência do religioso sobrenatural sobre a sociedade e a cultura humana se apóia, precisamente, naquela absolutização do imanente. Não se dá conta de que, estendida como "espírito do povo", universalizada e absolutizada nas filosofias idealistas, a nação passa a ter o papel das religiões gentias e a dar desde logo por "cancelada" a economia sobrenatural e divinizante da Igreja católica, maximamente apta para ser orientadora e geradora de culturas humanas.”
(Francisco Canals Vidal, ¿Por qué Descristianiza el Liberalismo?)