sábado, 18 de outubro de 2014

A sociedade moderna é incapaz de uma verdadeira metanóia

“Em uma passagem do Evangelho de São João, é-nos relatada a bela conversa noturna que Nicodemos mantém com Jesus: ‘Como pode alguém nascer, sendo já velho?’ pergunta Nicodemos. ‘Acaso se pode entrar outra vez no seio da mãe e voltar a nascer?’ E Jesus lhe responde que, com efeito, qualquer homem, não importa quão velho seja, pode voltar a nascer do Espírito. Trata-se de uma das passagens mais inspiradoras do Evangelho, porque nos fala da possibilidade de renovarmo-nos de forma profunda e radical, ressuscitando sobre as cinzas do homem velho. Também é uma das passagens mais definidoras da esperança pregada por Jesus: converter-se é ‘voltar a nascer’; e, uma vez abraçados a essa vida nova, ninguém nos vai pedir contas da vida antiga que decidimos deixar para trás. Não importa o que tenhamos sido, não importa o que no passado tenhamos feito ou deixado de fazer, mas o que fazemos aqui e agora, o que somos a partir deste instante; porque a vida humana está constantemente aberta a um renascimento. Essa é uma idéia de uma grande beleza que ao homem moderno custa aceitar, talvez porque previamente se endeusou: e quem é incapaz de reconhecer seus erros não pode conceber que tais erros possam chegar a apagar-se, sem deixar hipotecas, uma vez que os tenhamos renegado. É deveras esclarecedor comprovar como, em nossa época, muita gente que errou trata de ocultar desesperadamente seu erro; e, quando já não pode fazer nada para continuar ocultando-o, sua vida desmorona por completo: entre as personalidades públicas, tais erros não reconhecidos costumam acabar com carreiras promissoras ou com a condenação ao ostracismo de quem antes havia desfrutado do aplauso do mundo; na vida cotidiana, os consultórios de psiquiatras estão apinhados de pessoas incapazes de reconhecer plenamente o mal que fizeram e de aceitar os efeitos benéficos do perdão.
Mas em que consiste esse voltar a nascer de que se fala nessa passagem evangélica? À conversão os gregos chamavam (e assim aparece designada com freqüência nos textos neotestamentários) metanóia, que significa ‘mudança de mente’, uma mudança radical em nosso modo de pensar e de agir, um encontro com a verdade não só como conhecimento teórico, mas como transformação radical da vida inteira. Naturalmente, tal metanóia não se pode conseguir sem renegar nossos antigos erros. Mas renegar o erro exige coragem, humildade e fortaleza: coragem para julgar em consciência nossa própria vida; humildade para reconhecer o mal que temos causado; e fortaleza para não sucumbir à tentação de voltar a causá-lo. Humildade, coragem e fortaleza, só as pode oferecer a contrição, que é como se chama, ou se chamava, a dor espiritual que nasce de reconhecer o erro e chegar a odiá-lo, com o propósito de não o repetir jamais. Certamente, ainda que detestemos os erros que cometemos, podemos voltar a incorrer neles (já se sabe que o homem é o único animal que tropeça na mesma pedra); mas sem essa dor não pode haver autêntica metanóia. Para abrir-se a uma vida nova, primeiramente deve-se ter valor para odiar a antiga; e renegar os hábitos passados, às vezes inveterados, é talvez o desafio máximo que uma pessoa pode enfrentar.
A necessidade de uma metanóia radical é talvez a mais nobre aspiração de toda pessoa que ainda não tenha extraviado por completo a noção de sua humanidade; mas é também uma obrigação coletiva. Em uma época como a presente, na qual as sociedades afundam por todas as partes, é preciso mudar os costumes e a inteligência das classes governantes, melhorando a fundação das coisas à luz de princípios novos. Mas às sociedades de hoje em dia ocorre o mesmo que ao homem contemporâneo: são incapazes de reconhecer os erros cometidos, e em conseqüência não podem obter os efeitos benéficos do perdão. Essa incapacidade as mantém prisioneiras do mal, incapazes de renegá-lo; isso se percebe muito claramente, por exemplo, nos desejos que todos temos de superar a chamada ‘crise econômica’ que nos atinge... sem renegar os erros que nos levaram a ela; e querendo, além disso, continuar vivendo como fazíamos antes de padecê-la. Essa incapacidade para a verdadeira metanóia, para um voltar a nascer, é conseqüência do endeusamento do homem que se nega a reconhecer sua culpa, que disfarça o mal com a máscara do bem e que, ao fim, se afoga no mal que se tornou seu habitat natural.”
(Juan Manuel de Prada, Volver a Nascer)