sábado, 10 de maio de 2014

O fim do senso comum

“Depois de um trabalho de vários séculos de destruição, conseguiu-se acabar por fim com aquilo que antes se conhecia como “senso comum”.
Esse sentir adquiriu aquele nome glorioso ao se instalar em uma maioria suficientemente ampla para poder ser chamado de “comum”.
Embora seu triunfo nunca tenha chegado a ser total, perfeito e completo (como toda coisa humana, transiente e falível), conseguiu, no entanto, instalar um certo grau de sensatez geral. Isso vinha sendo mantido, em parte, por uma sabedoria popular durante séculos, registrada e arquivada na memória dos povos nos ditos e nos adágios populares. Disse “em parte” porque a raiz, o mais importante, fincava-se na instrução e na vivência da religião desde a infância: O sentido do sagrado; o saber que o homem é só uma criatura dependente; a responsabilidade sobre seu próprio destino; e não só seus direitos na sociedade, mas também seus próprios deveres para com ela; o sentido desta vida; o saber que existe o bem e o mal, e que não está permitido fazer qualquer coisa sem antes considerar não só o bem individual como também o social; que as ações boas ou más terminam enclausuradas em nosso pequeno mundo individual sem que tenham uma repercussão em todos os demais seres e as coisas que nos rodeiam. Que cada ação nossa se espalha ao nosso redor como as ondas em uma fonte d'água; que até nossa vida interior tem uma influência fora de nós, para o bem ou para o mal; Que existia um julgamento depois da morte com um prêmio ou um castigo in eternum. E todas essas coisas formavam juntas um intricado tecido capaz de abrigar e, ao mesmo tempo, de dar um chão onde firmar-se para poder andar. Tudo isso chegou a constituir naturalmente um senso comum acerca de todas as coisas. Chegou a formar o que se conhecia como o “bom senso” ou sensatez, a tal ponto que mereceu ser chamado de “senso comum”. Mas por causa de sua liqüidação e expulsão de toda a sociedade (celebrado por alguns como um triunfo), poderíamos chamar os restos esparsos daquele senso outrora comum, sobrevivente agora só em pequenas ilhotas, cada vez mais raras, como o senso menos comum que existe. Então existirá a partir de agora outro tipo de sentir comum. É o de sentirem-se os homens navegando todos à deriva, sem bússola e sem destino certo de nada. Já não há chão onde apoiar os pés para poder andar, já não há um norte que nos guie, não há bússola, não há mapas. São cantos difusos de sereias enganadoras, cantos lisonjeadores do egoísmo e de prazeres que dispersam e embrutecem o homem; e forças titânicas soltando-se por toda parte e agitando furiosamente as ondas sobre as quais flutuamos. O céu foi ocultado e fechado com as espessas nuvens de loucas ideologias, manejadas pelos poucos poderosos que açulam o caos para reinarem de seus tronos seguros e ocultos nessas mesmas obscuridades. Foi aberto um negro abismo debaixo dos homens. A transcendência para o alto foi substituída por outra, para baixo, para as cavernas infernais. Sintoma claro manifesto já na música, no cinema e em toda a arte (inclusive na sacra, ou no que restou dela). É que querem começar uma sociedade nova e um mundo novo a partir do zero. Diabólica ilusão que ignora a verdadeira natureza do homem e de todas as coisas. Cria-se a máquina de uma sociedade teórica e tecnologicamente perfeita e, depois, pretende-se enfiar nela o homem e, se o homem se quebra, não será culpa da máquina, mas do homem. Então será necessário remodelar o homem. Fazer um homem novo, para que possa funcionar dentro da sociedade-máquina, sem se quebrar.
Sem considerar que o que poderia funcionar ali dentro não pode ser jamais o homem natural, mas um homem artificial, um homem máquina, um robô. Retrato-me. Sim. Considerou-se o homem natural. O homem tal como o conhecemos, ou o que vai restando dele. O homem, por assim dizer, naturalmente humano. Então se deve remodelar esse homem. Fazê-lo mais maleável, mais afim, mais adequado à máquina. E isso seria, precisamente, um robô – pensam os ideólogos ajudados por seus tecnocratas – e um robô não se quebrará, além de possuir uma vantagem adicional. E essa vantagem é esta, o robô pode ser programado para que não se revolte. Os robôs não se revoltam, não podem como robôs que são. Só se deve saber como “fabricá-los”, programá-los. E os meios de comunicação já conseguiram avanços significativos nesse sentido. Até agora significou mais que um bom ensaio. Talvez seja preciso ainda fazer alguns pequenos “ajustes” com outros “métodos auxiliares”. A máquina já está funcionando. Anestesiamos bastante o paciente para conseguir uma operação sem demasiados inconvenientes. Sempre haverá algumas reações diante da dor por ferir a natureza. Mas que importa já isso! O que importa realmente é alcançar essa sociedade “perfeita”, matematicamente perfeita. Cientificamente perfeita. Criada somente pelo homem e feita à sua medida. Não mais mistérios. Uma sociedade de laboratório, uma sociedade clinicamente esterilizada diante de possíveis vírus. Já não haverá o antigo e obsoleto “senso comum”. O obsoleto senso comum de antanho era não só um fruto natural da humanidade, mas havia sido “tocado” e transformado pelo cristianismo. Por isso já não serve mais. A partir de agora deverá haver um novo sentido das coisas, de todas as coisas, e reinará a partir de hoje. O Anticristo falou.”
(Carlos Pérez Agüero, Sentido Común… ¿Sentido Qué?)