segunda-feira, 24 de junho de 2013

Os graus do farisaísmo

“Alguns de meus amigos se afastaram da prática religiosa, ou até renegaram a Igreja “institucional”, porque descobriram em muitos católicos uma inconseqüência fatal entre a fé que garantem professar e as obras pelas quais, segundo reza o Evangelho, devem se distinguir os verdadeiros discípulos de Jesus. Este mal do farisaísmo introduzido no coração da Igreja é sem dúvida o mais grave dos que corrompem a fé, e o mais difícil obstáculo para a evangelização: não foi à toa que Jesus fez de sua luta contra o farisaísmo um empenho pessoal constante (não há pecado que receba mais condenações e execrações em sua pregação); e não foi à toa que seus detratores mais inflamados, que acabaram por levá-lo à Cruz, foram os fariseus maquinadores, que não suportavam sua denúncia implacável e acérrima: raça de víboras, sepulcros caiados, et cetera.
O farisaísmo é a causa principal da apostasia generalizada que aflige a Igreja; a esta causa endógena se juntam, certamente, outras muitas exógenas que, entretanto, desabariam como um castelo de cartas se a pessoa inclinada a desertar da fé descobrisse, entre os que se supõe não terem desertado, uma autêntica comunidade de fé e vida, uma congruência natural entre o que dizemos e o que fazemos. Certamente não devemos confundir as inevitáveis debilidades da natureza humana, conseqüência de nossa condição pecadora, com o farisaísmo, que é antes o contrário: pois o fariseu costuma ser pessoa soberba e de coração endurecido que se crê invulnerável às emboscadas do pecado que afligem o restante de nós mortais; e das alturas de sua presunção constrói uma religiosidade de pura fachada, uma espécie de fé dessecada, esclerosada, que acaba se transformando em impostura.
Leonardo Castellani, que nunca se cansou de denunciar o farisaísmo, estabeleceu em sua grandiosa obra Os Papéis de Benjamin Benavides uma gradação deste mal corruptor sumamente ilustrativa: 1) A religião se torna meramente exterior e ostentadora; 2) A religião se torna profissão e ofício; 3) A religião se torna instrumento de ganância, de honras, poder ou dinheiro; 4) A religião se torna passivamente dura, insensível, descarnada; 5) A religião se torna hipocrisia, e o 'santo' hipócrita começa a desprezar e odiar os que têm religião verdadeira; 6) O coração de pedra se torna cruel, ativamente duro; e 7) O falso crente persegue os verdadeiros crentes com fúria cega, com fanatismo implacável. Nesta gradação, Castellani distingue entre os três primeiros degraus, que são os mais tristemente habituais, e os quatro últimos, que qualifica com razão de diabólicos.
Do farisaísmo de 'primeira velocidade' todos temos experiência cotidiana: é a religião convertida em fachada e espalhafato, o sal que perde o sabor, o 'profissionalismo da religião' como dizia Thibon: é um mal que prospera sobretudo em circunstâncias nas quais a fé obtém um reconhecimento social; e onde, toda vez que uma multidão de não-crentes impõe certos gestos externos de afetada religiosidade ou rotineiro clericalismo, alguns sabidos aproveitam para tirar vantagem e fazer negócio. Em épocas como a nossa, nas quais a religião deixa de ter o reconhecimento social de antanho, este farisaísmo de 'primeira velocidade' tende a desaparecer, embora conserve seu raio de ação de portas adentro; por sua vez, o farisaísmo de 'segunda velocidade' é mais terrivel e odioso, desenvolve-se com uma pujança voraz e procura as estruturas de poder da Igreja, chegando às vezes, inclusive, aos postos de comando.
Já não tem nada a ver com a hipocrisia untuosa, com a afetação bajuladora, com a ambiçãozinha ou intriguinha clericalóide (embora, desde logo, as inclua), mas chafurda na perfídia e no crime, na perseguição inquisitorial ao justo e na traição à verdadeira fé, da qual o fariseu se apresenta paradoxalmente como cumpridor mais zeloso. Da atividade destes fariseus de segunda velocidade não temos uma experiência cotidiana visível, pois se desenvolvem em lugares onde a fé se torna burocracia e negociação; mas os efeitos de sua atividade contaminam toda a obra da Igreja. E, quando alguém se encontra com um destes fariseus, embora sua fé seja forte como um carvalho, treme como um frágil junco. É a prova mais dura que podemos enfrentar.”
(Juan Manuel de Prada, La Prueba más Dura)