sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O mundo do mal

“A solidariedade no mal, eis o que espanta! Porque os crimes, sejam os mais atrozes, não conseguem revelar muita coisa sobre a natureza do mal, como as sublimes ações dos santos pouco revelam sobre o esplendor de Deus. Quando, no Seminário Maior, começamos o estudo de livros que um jornalista mação do século passado - Leo Taxil, penso – tinha posto à disposição do público sob o título, aliás enganoso, de Livros Secretos dos Confessores, o que primeiro nos surpreendeu foi a extrema pobreza dos meios de que o homem dispõe para, não digo ofender, mas ultrajar a Deus, plagiar miseravelmente os demônios... Porque Satanás é um mestre extremamente cruel: não é ele quem iria ordenar, como o Outro, com sua divina simplicidade: imitai-me! Não tolera que suas vítimas se pareçam com ele; só lhes permite uma caricatura grotesca, abjeta, impotente, da qual deverá desfrutar, sem nunca se saciar, a feroz ironia do abismo.
Em uma palavra, o mundo do mal está tão fora do alcance do nosso espírito! Aliás, nem sempre consigo imaginá-lo como um mundo, um universo. Ele é, será sempre, apenas, um esboço, o esboço de uma criação disforme, abortada, no extremo limite do ser. Penso nestas cavidades flácidas e translúcidas do mar. Que importa ao monstro um criminoso a mais ou a menos? Desde o primeiro instante, devora seu crime, incorpora-o à sua abominável substância, digere-o, sem sair, um momento, de sua terrível e eterna imobilidade. Mas o historiador, o moralista, o próprio filósofo só querem ver o criminoso: refazem o mal, à imagem e semelhança do homem. Não têm idéia alguma sobre o mal em si, essa enorme aspiração do vazio, do nada. Porque se nossa espécie deve perecer, perecerá de repugnância, de tédio. A pessoa humana terá sido roída, lentamente, como uma trave, por esses cogumelos invisíveis, que, em algumas semanas, transformam um pedaço de carvalho em uma matéria esponjosa onde se pode enfiar o dedo, sem esforço. E o moralista discutirá paixões, o homem de Estado multiplicará guardas e funcionários, o educador redigirá programas – gastar-se-ão tesouros para trabalhar, em vão, sobre uma massa já sem fermento.”
(Georges Bernanos, Journal d’un Curé de Campagne)

Tradução de Edgar de Godoi da Mata-Machado