terça-feira, 12 de abril de 2011

Modificação do passado e duplipensamento

“A modificação do passado é necessária por duas razões, uma das quais secundária e, por assim dizer, preventiva. A razão secundária é que o membro do Partido, tal como o proletário, tolera as condições vigentes em parte porque não dispõe de termos de comparação. Deve ser afastado do passado, assim como deve ser afastado de países estrangeiros, porque é necessário que acredite que está em melhor situação do que seus antepassados e que o padrão médio de conforto material aumenta ininterruptamente. Mas, de longe, a razão mais importante para que se reajuste o passado é a necessidade de salvaguardar a infalibilidade do Partido. Não se trata apenas de atualizar constantemente discursos, estatísticas e registros de todo tipo para provar que as previsões do Partido se confirmam em todos os casos. Trata-se também de não admitir em hipótese nenhuma a ocorrência de alterações na doutrina ou no alinhamento político. Porque mudar de opinião, ou mesmo de atitude política, é uma confissão de fraqueza. Se, por exemplo, a Eurásia ou a Lestásia (conforme o caso) for o inimigo de hoje, então é necessário que esse país sempre tenha sido o inimigo. E se os fatos atestarem algo diferente, então é preciso alterar os fatos. Dessa forma, a história é constantemente reescrita. Essa falsificação diária do passado, levada a efeito pelo Ministério da Verdade, é tão necessária para a estabilidade do regime quanto o trabalho de repressão e espionagem realizado pelo Ministério do Amor.
A mutabilidade do passado é o ponto central da doutrina do Socing. Afirma-se que os fatos passados não têm existência objetiva e que sobrevivem apenas em registros escritos e nas memórias humanas. O passado é tudo aquilo a respeito do que há coincidência entre registros e memórias. Considerando que o Partido mantém absoluto controle sobre todos os registros e sobre todas as mentes de seus membros, decorre que o passado é tudo aquilo que o Partido decide que ele seja. Decorre ainda que, embora seja possível alterar o passado, o passado jamais foi alterado em nenhuma instância específica. Isso porque nas ocasiões em que é recriado na forma exigida pelas circunstâncias, a nova versão passa a ser o passado, e nenhum outro passado pode ter existido algum dia. Esse sistema funciona inclusive quando – como acontece muitas vezes – o mesmo fato precisa ser profundamente alterado diversas vezes no mesmo ano. Em todas as ocasiões, o Partido detém a verdade absoluta, e fica evidente que o absoluto jamais poderia ter sido diferente do que aquilo que passou a ser. Veremos que o controle do passado depende acima de tudo do treinamento da memória. Garantir que todos os registros escritos estão de acordo com a ortodoxia do momento é um mero ato mecânico. Mas é necessário lembrar-se que todos os fatos se passaram da maneira desejada. E caso seja necessário reorganizar nossas memórias ou alterar os registros escritos, também será necessário esquecer que o fizemos. O modo como se produz isso pode ser aprendido, como qualquer outra técnica mental. E ele é aprendido pela maioria dos membros do Partido: certamente por todos os que são ao mesmo tempo inteligentes e ortodoxos. Em Velhafala isso recebe o nome muito direto de “controle da realidade”. Em Novafala é o duplipensamento, embora o termo duplipensamento também abranja muitas outras coisas.
Duplipensamento significa a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas memórias precisam ser alteradas; em conseqüência, sabe que está manipulando a realidade; mas, graças ao exercício do duplipensamento, ele também se convence de que a realidade não está sendo violada. O processo precisa ser consciente, do contrário não seria conduzido com a adequada precisão, mas também precisa ser inconsciente, do contrário traria consigo um sentimento de falsidade e, portanto, de culpa. O duplipensamento situa-se no âmago do Socing, visto que o ato essencial do Partido consiste em usar o engodo consciente sem perder a firmeza de propósito que corresponde à total honestidade. Dizer mentiras deliberadas e ao mesmo tempo acreditar genuinamente nelas; esquecer qualquer fato que tiver se tornado inconveniente e depois, quando ele se tornar de novo necessário, retirá-lo do esquecimento somente pelo período exigido pelas circunstâncias; negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo tomar conhecimento da realidade que negamos – tudo isso é indispensavelmente necessário. Mesmo ao usar a palavra duplipensamento é necessário praticar o duplipensamento. Porque ao utilizar a palavra admitimos que estamos manipulando a realidade; com um novo ato de duplipensamento, apagamos esse conhecimento; e assim por diante indefinidamente, com a mentira sempre um passo adiante da verdade. Em última instância, foi graças ao duplipensamento que o Partido foi capaz – e, até onde sabemos, continuará sendo por milhares de anos – de deter o curso da história.
Todas as oligarquias do passado caíram do poder ou porque se calcificaram ou porque amoleceram. Ou porque se tornaram estúpidas e arrogantes, deixaram de ajustar-se às circunstâncias e foram derrubadas; ou porque se tornaram liberais e covardes, fizeram concessões quando deviam ter usado a força e, também aqui, foram derrubadas. Ou seja, caíram por causa da consciência ou por causa da inconsciência. O Partido foi capaz de produzir um sistema de pensamento no qual os dois estados podem coexistir sem problemas. Essa foi a única base intelectual capaz de oferecer permanência à autoridade do Partido. Se quiser governar e continuar governando, a pessoa deve ser capaz de deslocar o sentido de realidade. Porque o segredo da governança é combinar a crença na própria infalibilidade com a aptidão de aprender com os erros passados.”
(George Orwell, 1984)

Tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn