sexta-feira, 11 de março de 2011

A questão do molinismo (I)

“Sob a inspiração distante (pensamos nós) da recomendação feita por Santo Inácio que citamos anteriormente (a da moderação no elogio da Graça para não incidir no erro protestante que nega o livre-arbítrio do homem), Luís Molina procurou elaborar doutrina diferente das posições tomistas, pretendendo explicar o modo pelo qual a Graça, de um lado, e a ação da vontade do homem, do outro, se unem para a prática de atos bons ou atos de virtude. Ele escreveu um livro, Concordia liberi arbitrii cum gratia donis... em que expôs sua doutrina.
Recordemos brevemente a posição de São Tomás que, em muitos aspectos, foi adotada pelo Concílio de Trento contra os erros protestantes. São Tomás assinalou, como ensina a Igreja Católica, que a Graça divina é a origem primeira e indispensável de todo e qualquer ato sobrenaturalmente bom. Sem ela, é impossível ao homem agradar a Deus embora, sem ela, o homem possa praticar, aqui e ali, atos naturalmente (mas não sobrenaturalmente) bons. A doutrina tomista expõe ainda que a Graça divina inclina o homem para o bem agir, isto é, para a prática de atos bons determinados, em determinadas situações, quer por inspirações decorrentes da Graça santificante, quer por inspirações decorrentes de graças atuais, tanto interiores como exteriores. Essa inclinação que move a vontade do homem naquela direção sem violentá-la suscita ainda nele um primeiro movimento de aceitação daquela direção e daquela ajuda: o homem, por sua vontade, pode fazer ato seu aquilo que lhe veio, iniciado pela graça, completando o movimento com a sua iniciativa pessoal.
Essa alta e profunda concepção põe em relevo o papel de Deus, não o do homem, na vida moral deste; põe em relevo principal as circunstâncias e as características especialíssimas de cada situação e faz dessa realização moral uma espécie de equivalente à geração de uma idéia fecunda, ou à expressão de uma inspiração artística ou até à fecundação da qual nascerá ao mundo um homem. Essa associação assim rica entre Deus e o homem para a vida moral quotidiana só é possível se a Graça de Deus assim o determinar e por isso São Tomás ensina também que as graças para o bem agir serão “eficazes” ou “suficientes” conforme Deus queira que este homem aja no sentido que Ele determina ou Deus permita que ele aja de modo diferente. Expliquemos melhor. A doutrina católica estabelece que há homens escolhidos por Deus desde toda a eternidade para serem salvos. É o mistério da predestinação pelo qual sabemos que todos aqueles que vão para o céu ali entram pela pura misericórdia de Deus. A noção católica de mérito ou de recompensa só tem sentido se a ação do homem aceita e corresponde à obra da Graça em sua alma e só ao mérito assim considerado é que uma recompensa está prometida. Ora o que os tomistas ensinam é que, para esses homens, Deus concede graças que vão, infalivelmente, fazer com que eles pratiquem os atos bons que Deus quer, mas sem violentá-los e sem impedi-los de se associar livremente àquilo que Deus quer, assim obtendo méritos perante Nosso Senhor.
Outros homens há que Deus sabe, desde a eternidade, que não O querem e a estes Deus não dá suas graças “eficazes” mas apenas as graças chamadas “suficientes”, denominação que não exprime todo o drama e a profundidade do amor de Deus, mesmo pelos réprobos, enquanto vivem. Melhor seria chamar tais graças suficientes de “gemidos inenarráveis” com que Deus persegue o pecador até o fim de sua vida, sabendo que ele recusará até o fim os apelos divinos. Esse nome, “gemidos inenarráveis”, foi usado por São Paulo para se referir às súplicas com que o Espírito Santo, no fundo de nossas almas, espera de nós que atendamos às suas inspirações. Assim, em suma, o que a Igreja ensina é que os eleitos vão para o céu por graça de Deus e os reprovados para o inferno por culpa exclusiva sua. Como compreender esse mistério e como conciliar a ação irrecusável da graça “eficaz” com a liberdade humana? A livre disposição dos bens de Deus com a sua justiça? A misericórdia divina com a permissão para o mal? Tudo isso é muito difícil e o que a Igreja recomenda é tomar os dois extremos dessas cadeias e firmarmo-nos em ambos, ainda que sem compreender a sua conciliação íntima mais profunda. É evidente que essas noções são perturbadoras e o conceito de predestinação assim formulado torna-se uma preocupação não somente porque perguntemos: serei eu também escolhido? mas ainda porque vemo-nos diante da tentação de pôr em dúvida a Bondade divina quanto aos outros quando percebemos que tantos sinais de graças que nos são dadas parecem indicar-nos a dileção divina para conosco. Mas a verdade é que não a todos Deus concede seu beneplácito e embora isso nos pareça estranho (somos escolhidos sem mérito algum de nossa parte e há homens que são reprovados, mas por culpa sua), o fato é que isso é assim e São Tomás nunca admitiu facilitar a compreensão desse mistério com uma concepção que pusesse a coisa em termos “humanos”. Pois essa terrível realidade nos foi suficientemente anunciada:
“Então, de dois homens que estiverem num campo, um será tomado e outro será deixado. De duas mulheres que estiverem moendo com a mó, uma será tomada e outra, deixada.” (Mateus 24, 40-41)
O que é preciso é resistir à tentação que procura abalar a confiança na Bondade divina e na sua indefectível justiça.
Luís Molina rejeita a distinção tomista entre “graça eficaz” e “graça suficiente” no sentido acima indicado. A seu ver, a ação da Graça Divina é, sim, primeira, origem da inclinação da alma no sentido do bem agir, mas ela não predetermina ou semidetermina a aceitação pelo homem daquela moção de Deus. O homem permanece dono de seu “livre-arbítrio” e usa-o plenamente. Molina procura distinguir-se dos semipelagianos (vide Permanência nº 238-239) concebendo uma influência que ele chama “geral” para a ação da Graça sobre a vontade do homem mas que não afeta em nada a plenitude da livre decisão deste. Assim, segundo a sua concepção, é a resposta do homem à ação da Graça que fará eficaz a ação desta e a recusa dessa influência geral é que fará da graça concedida uma graça apenas suficiente. Eleitos serão os que responderem bem com seus atos à ação da Graça que será, desse modo, outorgada igualmente a todos. E reprovados serão os que rejeitarem a Graça, assim merecendo o inferno.
Na concepção de São Tomás, a ação boa é obra principalmente de Deus e mesmo a aceitação do homem é obra conjunta de Deus e do homem. Na de Molina, a ação boa é obra da graça divina quanto à sua origem mas é inteiramente obra do homem quanto à livre decisão deste.
Dir-se-ia que essas distinções e finesses não chegam a ser inteligíveis para o homem comum e não afetam portanto sua vida religiosa. Mas, na verdade, as duas concepções darão origem a mentalidades práticas distintas que irão se traduzir em comportamento comum distinto também para os fiéis, ainda que pouco freqüentadores das disputas teológicas.
Tomistas e molinistas do século XVI engalfinharam-se em discussões que acabaram em troca de insultos. Os molinistas acusavam os tomistas de favorecerem um “laxismo” moral ou mesmo uma espécie de quietismo, com o qual o homem não fará nada para se corrigir e deixará tudo à ação da Graça. Os tomistas, repelindo tais acusações, acusavam por sua vez os molinistas de serem aparentados a uma nova forma de semipelagianismo, ignorando o relevo devido à ação de Deus na alma humana. Depois de duas tentativas de solução para as disputas, em que os dirigentes da ordem dos jesuítas e da ordem dos dominicanos, além de teólogos dos dois lados e cardeais nomeados pelo Papa se reuniram em conferências especiais, nenhuma solução foi encontrada e o Papa Paulo V proibiu as discussões e as ofensas mútuas, ambas as doutrinas ficando assim abertas à preferência dos católicos.
Evidentemente não temos nem competência nem autoridade para pretender dirimir a querela mas, lembrando que a decisão de Paulo V também admite que possamos ser tomistas e não molinistas desde que não acusemos os molinistas de não-católicos; deixando de lado as disputas entre as ordens religiosas e as ofensas de cada partido, julgamos que pode haver utilidade e é mesmo indispensável retomar o assunto para, com o recuo de vários séculos, compreender melhor o que se passou nos ambientes católicos ao longo de todos esses anos e assim chegarmos a uma melhor compreensão do que se passa hoje."
(Júlio Fleichman, Itinerário Espiritual da Igreja Católica)