“O Evangelho segundo São Marcos
Com relação ao segundo Evangelho, “deve-se afirmar com certeza que Marcos, discípulo e intérprete de Pedro, é realmente o autor do Evangelho que se lhe atribui”. Os testemunhos da Tradição a favor do Evangelho de São Marcos são especialmente abundantes e claros.
Assim, por exemplo, disse São Papias: “E isto dizia o Presbítero [João Apóstolo]: Marcos, intérprete de Pedro, escreveu diligentemente, embora não por ordem, aquilo de que se recordava sobre os ditos ou feitos de Cristo. Pois nem havia ouvido o Senhor, nem o havia seguido, mas havia acompanhado e ouvido Pedro, que pregava o Evangelho segundo a necessidade dos ouvintes e sem seguir uma ordem contínua dos oráculos do Senhor. Por isso Marcos não cometeu erro ao escrever seguindo suas recordações, pois não teve mais que um cuidado, o de não suprimir nem falsificar nada do que ouvira [de Pedro]”.
Também é muito explícito o testemunho de Clemente Alexandrino: “Como Pedro pregasse publicamente em Roma a palavra de Deus e promulgasse o Evangelho com a assistência do Espírito Santo, os ali presentes pediram a Marcos, que fazia já tempo que seguia a Pedro e tinha na memória sua pregação, que escrevesse o que o Apóstolo havia pregado”.
E assim Marcos compôs um Evangelho e o entregou aos que o haviam pedido. Sabendo disso Pedro, nem proibiu que assim se fizesse, nem o incentivou a tal”.
Desse modo, São Marcos escreveu seu Evangelho em Roma, a pedido dos fiéis dessa cidade, e ao escrevê-lo não fez mais que transcrever o Evangelho que Pedro pregava. Esse vínculo entre São Pedro e São Marcos é importantíssimo. De fato, a Tradição nos ensina que São Pedro estabeleceu sua sede em Roma no ano 42, isto é, no mesmo ano da dispersão dos Apóstolos. São Marcos deveu acompanhá-lo a Roma como seu intérprete. Depois de alguns anos seguindo o Príncipe dos Apóstolos, ou seja, até os anos 45-48, os fiéis de Roma lhe pediram que pusesse por escrito a pregação de São Pedro. Essa data se deduz igualmente de outras duas razões:
- A primeira, mais geral, é que, “segundo o antiquíssimo e constante testemunho da Tradição, Marcos escreveu o segundo Evangelho, depois de Mateus e antes de Lucas, que foi o terceiro”; razão pela qual São Marcos não pôde escrever seu Evangelho antes do ano 40, data da redação do Evangelho de São Mateus (e tampouco antes de 42, ano da chegada de Marcos a Roma), nem tampouco depois do ano 62, ano em que Lucas escreve o seu.
- A segunda, mais exata, é que o descobrimento na gruta 7 de Qumran do manuscrito 5 (7Q5) nos obriga a situar a redação do Evangelho de São Marcos alguns anos antes do ano 50. De fato, esse manuscrito reproduz uma passagem de São Marcos (6, 52-53: “[Já que não] haviam compreendido o milagre dos pães e seu coração se achava endurecido. Depois de atravessar o lago [até a terra] chegaram a Genesaré e atracaram ali. E quando...”). Os especialistas, enquanto esperavam sua identificação, dataram-no imparcialmente como anterior ao ano 50. Entretanto, se no ano 50 já existia esse texto, o original do qual é cópia deve ser-lhe anterior, mas não tanto que não se combine com a afirmação da Tradição segundo a qual São Marcos redigiu seu Evangelho alguns anos após seguir o Príncipe dos Apóstolos. E assim, os anos 45-48 são a data quase obrigatória de sua redação.
O Evangelho segundo São Lucas
No que se refere ao terceiro Evangelho, toda a Tradição da Igreja, unanimemente, afirma não apenas que São Lucas é seu autor, mas também que escreveu seu Evangelho segundo a pregação de São Paulo, embora informando-se igualmente com os demais Apóstolos, como ele mesmo declara no prólogo a seu Evangelho.
Santo Irineu ensina que “Lucas, seguidor de Paulo, escreveu em um livro o Evangelho que este pregava”.
Eusébio disse: “Lucas, oriundo de Antioquia por sua linhagem e médico de profissão, havendo vivido bastante tempo como companheiro íntimo de Paulo, e tratado com os demais Apóstolos..., nos deixou dois livros inspirados. O primeiro deles é o Evangelho, que compôs, como ele mesmo declara, segundo o que lhe haviam transmitido os que desde o princípio foram testemunhas oculares de Cristo e ministros da palavra divina, a todos os quais já seguia, disse ele, desde o início. O segundo é o dos Atos dos Apóstolos, que compôs, já não com o que havia ouvido, mas com o visto por seus próprios olhos”.
Sobre sua data de redação, a Pontifícia Comissão Bíblica ensina que “não é lícito diferir o tempo da composição do Evangelho de Lucas até a destruição da cidade de Jerusalém, nem tampouco se pode afirmar, pelo fato de a profecia do Senhor acerca da destruição de Jerusalém parecer mais determinada em Lucas, que seu Evangelho foi escrito quando já se havia iniciado o cerco da cidade”. Os que assim diferiam a redação do terceiro Evangelho (como a dos anteriores) são os racionalistas (e modernistas), para quem o dito vaticínio só pode explicar-se depois de haver sucedido o acontecimento, ou quando já é possível prevê-lo. Pelo contrário, continua a Pontifícia Comissão Bíblica, “deve-se afirmar que o Evangelho de Lucas precedeu o livro dos Atos dos Apóstolos e que, como esse livro, que tem o mesmo Lucas por autor [At 1, 15], já estava escrito ao fim do cativeiro romano do Apóstolo, seu Evangelho não foi composto depois dessa época”.
Podemos situar com segurança a composição do Evangelho de São Lucas até o ano 60-61. De fato:
- São Lucas terminou seu segundo livro, os Atos, no final do primeiro cativeiro de São Paulo (ano 62), antes que o Apóstolo fosse solto; portanto o Evangelho já estava escrito nessa data;
- O Evangelho não foi redigido muito antes dos Atos, como se deduz, por um lado, de que São Lucas considera esse segundo livro como a segunda parte de seu Evangelho (At 1, 1) e por outro, de que a fisionomia paulina do terceiro Evangelho supõe que seu autor havia vivido durante certo tempo junto ao Apóstolo dos Gentios; no entanto, São Lucas não freqüentou assiduamente São Paulo senão a partir de sua terceira viagem apostólica (53-58).
O Evangelho segundo São João
No que se refere ao quarto Evangelho, não apresentam os críticos as mesmas objeções que para os três Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), pelo fato de que foi redigido certamente muito depois da destruição de Jerusalém, e a Tradição mesma indica com exatidão uma data de redação posterior a esse acontecimento. De fato, por um lado não pode ser posterior ao ano 98, ano da morte de São João; mas por outro, os Prólogos Monarquianos (texto do século III ou IV) atribuem prioridade de data e composição ao Apocalipse, que foi redigido em Patmos até o final do reinado de Domiciano (81-96), e, mais exatamente, segundo Eusébio, no ano 14 de Domiciano, ou seja, no ano 95.
Assim, o Evangelho segundo São João terá sido escrito após o retorno de São João de Patmos, algum tempo depois do ano 96.
Apesar de ser um Evangelho de datação tardia, os racionalistas e os modernistas não ficaram satisfeitos e procuraram impugnar sua historicidade e autenticidade (ou atribuição ao Apóstolo São João). Apresentam como argumentos a fisionomia distinta desse Evangelho em relação aos demais, apresentando-o como uma série de elevações ou meditações de um certo personagem chamado “João, o presbítero” (o qual não se deveria identificar com o Apóstolo São João), o qual as teria posto nos lábios de Jesus (como fez o monge que escreveu a Imitação de Cristo) e que assim lhe faltaria qualquer historicidade.
Com tal impugnação vemos claramente que o que se pretende ao postergar a datação dos demais Evangelhos é pôr em dúvida sua historicidade; e para que essa historicidade tenha menos respaldo, negar também que tais Evangelhos tenham por autores testemunhas oculares. No entanto, também para o Evangelho de São João o Magistério da Igreja interceptou essas teses. E assim, por meio da Pontifícia Comissão Bíblica, manda-nos sustentar, com argumentos à mão:
1º) Que o quarto Evangelho é “a obra pessoal do Apóstolo São João, e de ninguém mais”, como se prova “pela constante, universal e solene tradição da Igreja, que vem já do século II, como principalmente se deduz: dos testemunhos e alusões dos Santos Padres e escritores eclesiásticos; de sempre e em todo lugar ter-se aceitado o nome do autor do quarto Evangelho no cânone dos Livros Sagrados; dos mais antigos manuscritos, códices e versões em outros idiomas dos mesmos Livros; do público uso litúrgico que desde os começos da Igreja se estendeu a todo o orbe...; de modo que as razões dos críticos aduzidas em contrário não debilitam de modo algum essa tradição”.
2º) Que São João redigiu seu Evangelho como uma obra propriamente histórica, e não como uma “contemplação mística do Evangelho”; pois “pela prática que esteve constantemente em vigor desde os primeiros tempos da Igreja universal de defender o quarto Evangelho como documento propriamente histórico, deve-se afirmar, ao se observar a índole peculiar do mesmo Evangelho e a intenção manifesta do autor de ilustrar e defender a divindade de Cristo pelos próprios feitos e discursos do Senhor, que os fatos narrados no quarto Evangelho são própria e verdadeiramente históricos, e não alegorias ou símbolos doutrinais parcialmente inventados; e que os discursos do Senhor são própria e verdadeiramente discursos do Senhor mesmo, e não composições teológicas do escritor postas na boca do Senhor”.
Conclusão
Pelo já dito, resta bastante claro que a Igreja mantém com toda sua força a verdade da Tradição sobre as origens dos Evangelhos, e que com unhas e dentes, e contra todos os obstáculos, defende sua autenticidade apostólica, sua plena historicidade em fatos e discursos, sua datação antiga, sem a qual não poderiam ser a obra de testemunhas oculares (duas das quais testemunhas diretas, por serem apóstolos, e as outras duas testemunhas indiretas, por serem secretários dos apóstolos).
Por isso mesmo, todo intento de negar qualquer desses três pontos se encontrará sempre contra um ensinamento claro do Magistério e contra uma Tradição deveras constante e perfeitamente consignada da antiguidade, contra os quais de nada valem os argumentos de uma exegese racionalista e descrente, nascida fora da Igreja, e que por isso não merece dos católicos mais do que um firme repúdio e desprezo.”
(Pe. Jesus Mestre, La Datación de los Evangelios)