“Correm hoje tempos em que o católico deve defender com firmeza verdades elementares da doutrina católica, sem o menor respeito pelas opiniões contrárias dos “entendidos”. Uma dessas verdades é a referente à origem de nossos quatro Evangelhos canônicos, ou seja, dos que foram redigidos realmente por aquelas pessoas a quem são atribuídos; a segunda, a perfeita historicidade dos mesmos; e a terceira, intimamente ligada às anteriores, sua datação cronológica.
Mas os “entendidos” católicos hoje negam mesmo essas três coisas? Mais ou menos. Na exegese pós-conciliar prevaleceu a doutrina modernista, já condenada por São Pio X, segundo a qual:
1º) Cada um dos Evangelhos (como os demais escritos bíblicos) nasceu na Igreja e da tradição (até aqui pareceria católico, mas o sentido que se lhe dá é bem distinto); é a Igreja que os elaborou, meditando longamente sobre a pessoa de Jesus e sua obra, e essa reflexão, realizada no âmbito de uma “tradição” oral, fez com que as diferentes comunidades cristãs amadurecessem a idéia que tinham de Jesus, que foi aparecendo diante de seus olhos como o Filho de Deus. Uma vez estabelecida, essa reflexão da comunidade foi posta por escrito no seio mesmo da comunidade por algumas pessoas; desse modo, Mateus, Marcos, Lucas e João podem ser pessoas reais, mas também podem ser atribuições fictícias que designariam as comunidades de onde tais Evangelhos saíram.
2º) Essa reflexão de fé da comunidade, que “transfigura” o Jesus histórico para vê-lo e relê-lo à luz do acontecimento da Páscoa, leva tempo, um tempo considerável: 40 anos aproximadamente. Assim, os Evangelhos não podem ser anteriores ao ano 70. A prova de que foram escritos depois dessa data está, por outro lado, dentro dos mesmos Evangelhos: todos eles têm a previsão da destruição de Jerusalém, que, em boa exegese modernista, teve de ser escrita depois do fato ocorrido (já que a profecia não é verossímil).
3º) Uma distância tão grande entre os fatos e sua redação por escrito faz com que a historicidade dos fatos seja posta em dúvida. Se os Evangelhos tivessem sido redigidos pouco tempo depois dos fatos que narram, e por testemunhas oculares, não há dúvida de que se lhes deveria dar plena fé histórica; mas se seus autores são comunidades anônimas de fiéis que levam tanto tempo para trazer à luz os relatos do Jesus da fé, então houve tempo de sobra para que a tendência simbólica e mítica do homem, em seu esforço para expressar o religioso, pusesse mãos à obra, levando a tamanha idealização dos fatos que torna-se difícil adivinhar o que há de histórico em tudo isso.
Assim, como se pode ver, negar a estrita autenticidade dos Evangelhos leva a postergar para as calendas gregas sua redação por parte de pessoas anônimas, o que, por sua vez, nos faz duvidar da plena historicidade do que nos contam.
Vamos recordar, então, as principais verdades que se opõem a tais erros, nas quais ressaltaremos a antiga datação dos Evangelhos, como obra que são de testemunhas dos acontecimentos narrados, e, com isso, sua total historicidade. Para tanto desenterraremos os decretos que a Pontifícia Comissão Bíblica, nos tempos de São Pio X, emitiu sobre os quatro Evangelhos.
Testemunhos gerais da Tradição
Vejamos alguns testemunhos gerais da Tradição, a que aludem os decretos da Pontifícia Comissão Bíblica. São de três autores antiquíssimos: Tertuliano, Orígenes e Santo Irineu. O valor do testemunho se baseia em que, por viverem em época imediatamente posterior aos fatos, já se encontram perante uma tradição inalterável sobre a origem dos Evangelhos que remonta aos primeiros anos do cristianismo.
Tertuliano (160-220), representante da Igreja da África, afirma categoricamente que “o instrumento evangélico”, ou seja, a coleção dos Evangelhos, tem por autores os Apóstolos São João e São Mateus e os homens apostólicos São Marcos e São Lucas e acrescenta que esse fato é confirmado pela autoridade das Igrejas fundadas pelos Apóstolos.
Orígenes (185-254), representante da Igreja de Alexandria, dizia o seguinte sobre os Evangelhos: “Aprendi também da Tradição o que concerne aos quatro Evangelhos, os únicos que são admitidos sem controvérsia por toda a Igreja de Deus que está debaixo do céu. Isto é o que aprendi: que o primeiro Evangelho foi escrito em hebreu por Mateus, que antes foi publicano e depois, Apóstolo de Cristo, que o publicou para os judeus convertidos à fé. Aprendi que o segundo é o Evangelho de Marcos, que o escreveu como Pedro lho havia narrado... O terceiro é o de Lucas, elogiado por Paulo e escrito para os Gentios convertidos. O último, finalmente, é de João.” E continua: “Muitos se esforçaram por escrever evangelhos, mas nem todos foram recebidos... Entre eles, os que nós possuímos foram escolhidos e dados à Igreja pela Tradição... A Igreja só tem quatro Evangelhos, enquanto a heresia possui muitos deles...”
Santo Irineu (140-202), representante da Igreja do Ocidente, e cujo testemunho tem uma importância particular (pois por seu mestre, São Policarpo, por sua vez discípulo de São João Evangelista, se conectava diretamente com a época dos Apóstolos), disse assim: “Mateus escreveu entre os Hebreus o Evangelho em sua própria língua... Marcos, discípulo e intérprete de São Pedro, também escreveu o que fora pregado por Pedro. Lucas, por sua vez, consignou por escrito o Evangelho pregado por Paulo, a quem seguia. Finalmente João, discípulo do Senhor, que repousou a cabeça no peito do Senhor, publicou também um Evangelho quando estava em Éfeso na Ásia... Os Evangelhos, por conseguinte, não são em número mais que quatro, nem mais nem menos... Sendo assim, devem ser chamados de loucos e ignorantes e também atrevidos todos os que destroem a forma do Evangelho, e indicam ou mais formas, ou menos que as assinaladas”.
O Evangelho segundo São Mateus
Condensemos agora as certezas que a Tradição e o Magistério da Igreja nos dão sobre o Evangelho segundo São Mateus. Eles nos dizem: “o primeiro Evangelho foi escrito por Mateus, que antes foi publicano e depois, Apóstolo de Cristo” e que como tal foi testemunha direta dos fatos que narra, por haver estado com Nosso Senhor durante os três anos de sua pregação pública. A prova disso se encontra no “universal e constante consentimento da Igreja já desde os primeiros séculos, luminosamente manifestado nos testemunhos expressos dos Padres, os títulos dos códices dos Evangelhos, as versões dos Livros Sagrados e os catálogos transmitidos pelos Santos Padres, escritores eclesiásticos, Sumos Pontífices e Concílios, e finalmente o uso litúrgico da Igreja oriental e ocidental”.
Em seguida nos ensinam que “São Mateus precedeu os demais Evangelistas ao escrever seu Evangelho”, e a Pontifícia Comissão Bíblica nos obriga a manter a ordem cronológica de redação dos quatro Evangelhos tal como a recebemos da Tradição, a saber: Mateus, Marcos, Lucas e João.
A partir desses dados podemos investigar a data de redação desse Evangelho. Segundo a Pontifícia Comissão Bíblica, “não se pode adiar a redação do Evangelho de São Mateus para depois da ruína de Jerusalém” (os racionalistas afirmavam que o Evangelho de São Mateus não podia ter sido escrito antes do ano 70 pela razão óbvia – para eles – de que nele se profetizava a destruição de Jerusalém, que aconteceu no ano 70; e, como se sabe, não há racionalista que acredite em profecia), “mas, pelo contrário, de acordo com a tradição, a redação já estava terminada antes da vinda de Paulo a Roma”, no ano 60. Além disso, segundo toda a tradição eclesiástica, São Mateus escreveu seu Evangelho antes de deixar a Palestina para pregar entre os Gentios: “Depois da ressurreição de Cristo, [Mateus] foi o primeiro a escrever seu Evangelho, na Judéia, antes de partir para as províncias que lhe couberam por sorte para nelas pregar, e escreveu-o em língua hebraica, para uso dos judeus convertidos à fé” (Breviário Romano).
No entanto, como, segundo outra antiquíssima tradição, a dispersão dos Apóstolos aconteceu no ano 42, deduz-se que o Evangelho de São Mateus já estava escrito por essa época; e assim temos que situar sua redação até o ano 40 ou 41. Tal é a conclusão a que podemos chegar legitimamente a partir dos testemunhos da Tradição.”
(Pe. Jesus Mestre, La Datación de los Evangelios)