sábado, 13 de novembro de 2010

Uma afinidade entre humanistas e protestantes


“Sempre me espantei de que Lutero, ao levantar-se contra a autoridade de Roma, ao elaborar novas concepções relativas à vida da Igreja e do clero, ao proclamar o direito ao “livre-exame” dos textos da Escritura, tivesse também se preocupado com um ponto de teologia que não se vê desde logo por que o preocuparia tanto. Refiro-me à questão do papel da graça santificante na vida da alma e à famosa proposição: peca fortemente e crê fortemente, ensinando que a graça não nos purifica mas somente nos cobre e com ela Cristo nos salva ainda que putrefatos pelos pecados habituais, sem limpá-los. Apenas, dizia ele, é preciso crer fortemente para que isso aconteça. Por que tal preocupação? A razão é que os homens da Renascença humanística que haviam “despertado” maravilhados para o mundo novo que se abria para eles, cuja juventude se voltava com confiança para o estudo do latim e do grego e para o apreço da arte dos antigos, que encontravam tantas novidades, tantas viagens arrojadas e novos conhecimentos e técnicas e poder e glorificação, esses mesmos homens, no fundo de suas almas, conheciam a angústia (que Kierkegaard irá chamar de “existencial” e classificar como “desespero”). Essa angústia consistia em ouvirem tantas coisas novas, tantos sinais de um mundo maravilhoso, tantos encorajamentos das personalidades mais em evidência que as próprias autoridades admiravam e honravam (como acontecia com Erasmo) e, não obstante, saberem que pecavam e temerem por sua sorte eterna porque o mundo, naquela época, não estava ainda tão completamente corrompido e depravado como hoje. Os homens temiam porque viam que esses caminhos tão atraentes, largos e brilhantes não lhes ofereciam segurança quanto ao futuro na outra vida. Ora, os grandes autores do tempo procuravam responder a tal inquietação. Erasmo dizia aos jovens:
Os dons magníficos da natureza humana que a invenção e o aperfeiçoamento das ciências testemunham; tantas altas virtudes, tantos preceitos morais tão nobres, provêm da bondade de Deus. Entre o espírito dos bem nascidos e bem instruídos, não há, eu o proclamo, senão muito pouca inclinação para o mal.” (Hyperaspistes, II)
E acrescentava Rabelais:
Em sua regra (de vida) só existe esta cláusula: fazei o que quiserdes, porque pessoas livres, bem nascidas, bem instruídas, vivendo em honestas companhias, têm por sua natureza um instinto agudo que sempre as impele para a virtude e as retira do vício, instinto esse que chamam de “honra”.” (Gargantua, LVII, 1534)
Isso tudo queria dizer que, aos homens que a mentalidade comum impelia para seguirem suas inclinações naturais, esses autores respondiam: “não se preocupem, sigam-nas, é pouco provável que pratiquem o mal, vocês que são bem nascidos, bem instruídos etc.” Ora, a esses mesmos é que Lutero dirá, com sua frase famosa, o equivalente a isto: “não se preocupem, vocês são realmente pecadores, corrompidos, putrefatos e não vão deixar de sê-lo porque nossa natureza é assim mesmo, pecadora. Mas crê fortemente que o Cristo te salva e com isso a Sua graça te cobrirá e te salvará.””
(Júlio Fleichman, Itinerário Espiritual da Igreja Católica)

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