segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O individualismo radical de Ayn Rand


““Sim, esta é uma época de crise moral… Teu código moral atingiu seu ápice, a cega alameda e o fim de seu curso. E se quiseres continuar vivendo, aquilo de que agora precisas não é retornar à moralidade… mas descobri-la.”
Assim falou, não Zaratustra, mas o porta-voz filosófico de Ayn Rand, John Galt, protagonista de seu principal romance, Atlas Shrugged. A “crise moral” a que ele se refere é o conflito entre altruísmo, que é radicalmente imoral, e individualismo, que proporciona a única forma de moralidade possível. O altruísmo, para Galt e Rand, leva à morte; o individualismo fornece o único caminho que leva à vida. Assim, a fim de continuar vivendo com o mínimo de dignidade, devemos abandonar o código imoral do altruísmo e abraçar a prática vivificante do individualismo.
No decorrer da história, de acordo com Ayn Rand, houve três perspectivas gerais de moralidade. As duas primeiras foram místicas, o que, para Rand, significa fictícias, ou não-objetivas. A terceira é objetiva, algo que pode ser verificado pelos sentidos. Inicialmente, uma perspectiva mística dominou, na qual se acreditava que a fonte de moralidade era a vontade de Deus. Isso não é compatível nem com o ateísmo de Rand, nem com seu objetivismo. Oportunamente, uma perspectiva neo-mística se impôs, na qual o “bem da sociedade” substituiu a “vontade de Deus”. O defeito essencial dessa perspectiva, o mesmo da primeira, é que não se correlaciona com nenhuma realidade objetiva. “Não existe uma entidade chamada ‘sociedade’”, afirma Rand. E como somente indivíduos existem, o chamado “bem da sociedade” degenera no estado onde “alguns homens têm eticamente o direito de ir atrás dos caprichos (ou atrocidades) que desejarem, enquanto os outros são eticamente obrigados a gastar o restante de suas vidas a serviço dos desejos dessa gangue.”
Somente a terceira perspectiva de moralidade é realista e vantajosa. Tal é o objetivismo de Rand, uma filosofia centrada exclusivamente no indivíduo. Somente o indivíduo é real, objetivo e o verdadeiro fundamento da ética. Rand pode, assim, postular a premissa básica de sua filosofia: “A fonte dos direitos humanos não é a lei divina ou a lei humana, mas a lei da identidade. A é A – e Homem é Homem.”
Um indivíduo pertence a si mesmo enquanto indivíduo. Ele não pertence, de maneira nenhuma, a Deus ou à sociedade. Um corolário da premissa básica de Rand é que o “altruísmo”, ou o sacrifício da realidade de si mesmo – da individualidade própria – por uma realidade maior que si mesmo, é necessariamente autodestrutivo e, portanto, imoral. É por isso que ela pode dizer que “o altruísmo considera a morte como seu fim último e padrão de valor.” Por outro lado, o individualismo, cultivado através da “virtude do egoísmo”, é o único caminho para a vida. “A vida”, ela insiste, “só pode se manter em existência por um processo constante de ação auto-sustentada.” O destino do homem é ser uma “alma feita por si”.
Desta forma, o homem tem um “direito à vida”. Mas Rand não quer dizer, com essa afirmação, que ele tem um “direito à vida” que outros têm o dever de defender e apoiar. Uma tal idéia de “direito à vida” implica uma espécie de “altruísmo” e é, portanto, contrária ao bem do indivíduo. Na verdade, para Rand, ela constitui uma espécie de escravidão. “Homem nenhum tem o direito de impor uma obrigação não-escolhida, um dever não-recompensado ou uma servidão involuntária a outro homem. Não existe o “direito de escravizar”.” Além disso, grupos especiais não têm direitos, pois um grupo não é uma realidade individual. Daí ela negar firmemente que grupos como os “não-nascidos”, os “fazendeiros”, os “homens de negócio”, e assim por diante, tenham quaisquer direitos.
Sua concepção de “direito à vida” começa e termina no indivíduo. Nesse sentido, “direito à vida” significa o direito de o indivíduo procurar, por meio do uso racional de seu poder de escolha, tudo de que precise para sustentar e cultivar sua existência. “A vida de um organismo é seu padrão de valor: o que prolonga sua vida é bem, o que a ameaça é mal.” Rand faz John Galt dizer a seus leitores que “Há apenas uma única alternativa fundamental no universo: existência ou não-existência.” A existência do homem deve se manter em existência. Tal é o encargo do indivíduo e a utilidade da virtude do egoísmo. A não-existência é o resultado do altruísmo e aderna em direção à morte. Fazer sacrifícios para as crianças nascidas ou não-nascidas, para os pais idosos e outros membros da família, torna-se anátema para Ayn Rand. Ela quer que apareça uma Cultura da Vida, mas vê essa cultura somente em termos de indivíduos escolhendo egoisticamente os bens privados de sua própria existência. Se algum dia foi entoado um hino à filosofia pró-escolha, ele veio da pena de Ayn Rand: “O homem deve ser homem – por escolha; ele deve dar valor à própria vida – por escolha; ele deve aprender a preservá-la – por escolha; ele deve descobrir os valores que ela exige e praticar suas virtudes – por escolha. Um código de valores aceito por escolha é um código de moralidade.”
Filósofo nenhum jamais propôs uma perspectiva de vida mais simples e direta do que a de Ayn Rand. Homem=Homem; Existência=Existência; somente indivíduos são reais; todas as formas de altruísmo são inerentemente más. Não há nuances ou paradoxos. Não há sabedoria. Não há profundidade. As questões complexas dividem a realidade em dicotomias simples. Há o individualismo e o altruísmo, e nada entre eles. Apesar da aparente superficialidade de sua filosofia, Rand considerava-se a si mesma menor apenas que Aristóteles.
Barbara Branden nos conta em seu livro The Passion of Ayn Rand como Miss Rand conseguiu tornar miserável a vida de todos ao seu redor e, quando a sua própria chegou ao fim, ela mal tinha um amigo no mundo. Desprezava até mesmo seus próprios seguidores. Quando Rand faleceu em 1982 aos 77 anos de idade, seu caixão carregava uma reprodução da cédula de um dólar de dois metros de comprimento. Sua filosofia, adotada quando ainda era jovem, ajudou a garantir sua solidão: “Nada existencial jamais me deu grande prazer. E progressivamente, enquanto minha idéia se desenvolvia, eu tinha cada vez mais uma sensação de solitude.” Era inevitável, contudo, que uma filosofia centrada no eu e que excluía tudo o mais levaria sua praticante ao isolamento e a uma intensa solidão.
A filosofia de Ayn Rand é impossível de se viver, seja por ela mesma ou por quem quer que seja. Uma filosofia que não se pode viver mal pode servir de instrumento para a construção de uma Cultura da Vida. Não se a pode viver porque ela se baseia em uma falsa antropologia. O ser humano não é um mero indivíduo, mas uma pessoa. Como tal, ele é uma síntese de singularidade individual e participação comunal. O homem é um ser transcendental. Ele é mais que sua individualidade.
Os gregos têm duas palavras para “vida”: bios e zoe. Bios representa o sentido biológico e individual da vida, a vida que pulsa dentro de qualquer organismo. Essa é a única noção de vida que se encontra na filosofia de Ayn Rand. Zoe, por outro lado, é a vida compartilhada, a vida que transcende o indivíduo e permite participação em uma vida mais vasta, mais alta e mais rica.
Em Mere Christianity, C. S. Lewis ressalta que a mera bios está sempre tendendo ao colapso e à decadência. Ela precisa de subsídios incessantes da natureza na forma de ar, água e comida, a fim de prosseguir. Se não é nada mais do que bios, o homem jamais alcança seu destino. Zoe, ele segue explicando, é uma vida de enriquecimento espiritual que está em Deus por toda a eternidade. O homem precisa de zoe a fim de tornar-se realmente ele mesmo. O homem não é apenas homem; ele é um composto de bios e zoe.
Bios tem, para ser preciso, uma certa semelhança umbrosa ou simbólica com zoe: mas somente aquele tipo de semelhança que há entre uma foto e um lugar, ou entre uma estátua e um homem. Um homem que mudasse de bios para zoe sofreria uma mudança tão grande como uma estátua que se transformasse de uma pedra lapidada em um homem real.
Assim, a transição de bios para zoe (da vida individual para a vida pessoal e espiritualizada; do egoísmo para o amor ao próximo) é também a transição de uma Cultura da Morte para uma Cultura da Vida.”
(Donald DeMarco, Ayn Rand: Architect of the Culture of Death)

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