sábado, 26 de junho de 2010

Santo Tomás de Aquino e a cortesã


“Assim, aqueles três estranhos irmãos seguiram desordenadamente pela trágica estrada, um amarrado ao outro, como o criminoso e o policial, com a única diferença de que a prisão estava sendo efetuada pelos criminosos. E assim podemos ver suas figuras por um instante contra o horizonte da história; irmãos tão sinistros quanto todos os outros desde Caim e Abel. Porque esse estranho escândalo na grande família de Aquino destaca-se simbolicamente como representação de algo que sempre fará da Idade Média um mistério e objeto de assombro, passível de interpretações tão contrapostas quanto a luz e as trevas. É que em dois daqueles homens falava mais alto, podemos dizer gritava, um selvagem orgulho de sangue e de brasão de armas, embora eles fossem príncipes dos mais refinados de sua época, um orgulho que seria mais próprio de uma tribo dançando ao redor de um totem. Naquele momento, eles tinham esquecido de tudo exceto do nome de família, o que é menos amplo que uma tribo e muitíssimo menor que um país. E a terceira figura desse trio, nascida da mesma mãe e talvez visivelmente parecida com as outras de rosto ou de corpo, tinha uma concepção de fraternidade bem mais ampla do que a maioria das democracias modernas, uma vez que não era nacional, mas internacional; possuía uma fé na misericórdia e na modéstia bem mais profunda do que qualquer bom comportamento no mundo moderno, ao lado de um drástico voto de pobreza que hoje seria considerado um insano exagero de revolta contra o domínio dos ricos e o orgulho. Vieram do mesmo castelo italiano dois selvagens e um sábio ou um santo mais pacífico do que a maioria dos sábios modernos. É esse o aspecto confuso da questão, origem de centenas de controvérsias. É o que cria o enigma da época medieval: o fato de ela não ter sido uma, mas duas épocas. Examinamos o comportamento de alguns homens, e ela pode ser a Idade da Pedra; examinamos a mente de outros homens, e eles podem estar vivendo na Idade do Ouro, na mais moderna utopia. Sempre houve homens bons e homens ruins, mas nessa época homens dotados de sutileza conviviam com homens ruins que eram simplórios. Viviam na mesma família, eram criados no mesmo quarto e dali saíam para se combater uns aos outros, tal como o fizeram os irmãos de Tomás de Aquino à beira da estrada quando arrastaram o jovem frade pelo caminho e o prenderam no castelo da colina.
Quando os parentes tentaram tirar seu hábito de frade, Tomás provavelmente os enfrentou lutando como os pais, e deve ter conseguido, pois eles desistiram de tentar fazer isso. Ele aceitou a prisão em si com sua costumeira compostura, e provavelmente não se incomodava muito se o deixavam filosofar numa prisão ou numa cela de convento. No modo como a história é contada, algo sugere que, durante todo o tempo desse estranho seqüestro, ele foi carregado como uma pesada estátua de pedra. Apenas um dos relatos de seu cativeiro fala de sua raiva, e esse relato o mostra com mais raiva do que ele teve antes ou depois desse evento. Embora tenha despertado a imaginação de sua própria época por razões mais importantes, isso tem um interesse tanto psicológico como moral. Pela primeira e última vez em sua vida, Tomás de Aquino esteve de fato hors de lui (fora de si), agindo intempestivamente a partir da torre de intelecto e de contemplação em que costumava viver. E foi então que os irmãos introduziram em seu cômodo uma cortesã especialmente bela e atraente para fazê-lo cair em alguma súbita tentação ou ao menos envolvê-lo num escândalo. Sua raiva se justificava, mesmo a partir de padrões morais menos rigorosos do que os dele, porque a maldade era bem maior do que a inutilidade do expediente. Mesmo a partir de padrões bem menos elevados, Tomás sabia que os irmãos sabiam, e estes sabiam que ele sabia, que o estavam insultando como cavalheiro ao supor que ele quebraria seus votos com uma provocação tão grosseira. Tomás, por sua vez, tinha por trás de si uma sensibilidade bem mais terrível: toda aquela imensa ambição de humildade que era para ele a voz de Deus vinda do céu. Apenas nesse flagrante, vemos essa grande figura obstinada numa atitude ativa, ou mesmo agitada – e ele estava de fato agitado. Tomás de Aquino levantou-se da cadeira como um raio, apanhou uma acha de lenha ardente da lareira e sacudiu-a como uma espada flamejante. A mulher, como é natural, deu uns gritos e fugiu dali, o que era tudo o que ele desejava; mas é curioso imaginar o que a mulher deve ter pensado daquele louco de estatura monstruosa que balançava pedaços de madeira em chamas e aparentemente ameaçava tocar fogo na casa inteira. Mas tudo o que Tomás fez foi segui-la até a porta e fechá-la e trancá-la depois de ela passar; e então, numa espécie de impulso de ritual violento, passou vigorosamente a acha ardente na porta, escurecendo-a e riscando-a com um grande sinal negro da cruz. E, voltando, colocou o pedaço de madeira outra vez na lareira, e sentou-se naquela cadeira de estudos sedentários, naquela cadeira de filosofia, naquele trono secreto de contemplação, do qual nunca mais se levantou.”
(Gilbert Keith Chesterton, Saint Thomas Aquinas – “The Dumb Ox”)

Tradução de Maria Stela Gonçalves

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