“Perguntam-me alguns amigos católicos acerca da ortodoxia do Pe. Antônio Vieira, genial orador sacro, imperador da língua portuguesa, autor das páginas mais belas jamais escritas entre nós. A resposta implica dificuldades, pois dá-la exige separar o inigualável sermonista do homem que, a certa altura de sua trajetória intelectual, deu crédito às "profecias" dum sapateiro português da Beira, trovador afamado na vila chamada Trancoso. Seu nome? Gonçalo Annes, o Bandarra.
Tratava-se de textos escritos mais de um século antes de Vieira debruçar-se sobre eles. Em síntese, eram obras cujo teor messiânico, exaltado pela interpretação retórica do notável jesuíta luso-brasileiro, prognosticava o estabelecimento do Quinto Império (o de Portugal, evidentemente), antes da vinda do Anticristo. Eis o resumo da ópera: o rei D. João IV ressuscitaria para levar a cabo esse Império, o qual duraria mil anos, até o Dia do Juízo.
As trovas de Bandarra tinham claro sabor de milenarismo judaizante, e isto não podia passar ao largo da verruma doutrinária do Santo Ofício. Vieira precisou então se submeter a um duro processo, no momento em que tinha a saúde combalida pelas hemoptises de tísico e pelas febres decorrentes da malária contraída nas missões do Amazonas. Abstraiamos, contudo, estes detalhes para afirmar que quem conhece a doutrina do Magistério da Igreja não pode deixar de dar razão aos inquisidores; chega a ser inconcebível um homem da estatura de Vieira ter descambado numa credulidade tão despropositada.
A Inquisição compeliu inicialmente Vieira a falar do Quinto Império de maneira metafórica, por prudência; ele porém insistiu na interpretação literal: o Império se ergueria na terra, com certeza. Somente quando o Papa condenou as suas proposições, Vieira retratou-se. Mas muito a contragosto, vale destacar, como prova o fato de que, após receber um salvo-conduto de Clemente X, durante o seu exílio em Roma, veio para a Bahia e, mostrando grande pertinácia, continuou a escrever a "Clavis Prophetarum". Na ocasião, o Pe. Antônio já tinha mais de oitenta anos.
Discordo absolutamente de críticos literários como Alfredo Bosi — cujo conhecimento teológico é zero —, para quem o processo movido pela Inquisição tinha razões políticas, insufladas pelas discrepâncias entre dominicanos e jesuítas. Basta compulsar o estupendo arrazoado do Santo Ofício, cuja sentença foi lida para Vieira no dia 23 de dezembro de 1667, para constatar que estavam em jogo questões relativas à fé.
Como se vê, dar uma resposta categórica à indagação mencionada no começo deste breve texto é algo temerário. Meu conselho é filtrarmos a pitoresca espécie de sebastianismo de Vieira e ficarmos com o que, em sua obra, não derroga a fé.”
http://contraimpugnantes.blogspot.com.br