segunda-feira, 12 de setembro de 2016

É impossível o diálogo com o Islã


Um filósofo estudioso de Santo Tomás de Aquino analisa o Alcorão. Doutorado na prestigiosíssima Universidade de Lovaina, Martínez Barrera explica seu pensamento. O diálogo Cristianismo-Islamismo não é possível.
O filósofo Jorge Martínez Barrera esteve há um certo tempo na Universidade Católica para dar uma conferência sobre Santo Tomás de Aquino e o Islã, abordando uma complexa questão: “Seria possível, segundo Santo Tomás, pensar na possibilidade de uma conciliação entre a religião maometana e o Cristianismo?”.
Com este doutor em Filosofia e Master of Arts em Filosofia pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), que é membro do Conselho Acadêmico do doutorado em Filosofia da Universidade Católica de Santa Fé e primeira medalha Cardeal Mercier instituída pelo Institut Supérieur de Philosophie da Université Catholique de Louvain, conversou El Litoral e em uma entrevista deixou plasmado seu pensamento: não é possível uma posição de diálogo com o Islã.

- Qual é a posição de Santo Tomás a respeito do Islã?
- Santo Tomás herda sua posição a respeito do Islã fundamentalmente de São João Damasceno (século VIII) e de um autor árabe cristão, Al Quindi (século IX). Dou quase por certo que Santo Tomás não leu de forma direta o Alcorão porque no século XI estava proibido fazer traduções deste. Não obstante, havia uma feita no século XI, em grego, que um filósofo bizantino, Nicetas, realizou para refutá-lo, a Reputacio Coranis, na qual examina de maneira detalhada e cuidadosa cada um dos versículos e os refuta. Mas a única língua conhecida por Santo Tomás era o latim, por isso me chama a atenção a precisão das críticas que ele faz à religião muçulmana.
- Quais são as críticas centrais?
- Os que estudam o Alcorão identificam três grandes temas em torno da crítica ao Islã: a figura de Maomé, a guerra santa e a noção do Paraíso.
Os detratores do Alcorão consideram que Maomé era um fabulador, um adúltero, uma pessoa de pouco valor. Este é o único aspecto que Santo Tomás não toma demasiado em conta. Ele não se mete com a figura de Maomé.
- Esses detratores seriam São João Damasceno e Al Quindi?
- Sim e são árabes e vivem no mundo islâmico, por isso podem ter um conhecimento mais de primeira mão de quem foi realmente Maomé.
- Poderiam ter julgado com maior lucidez por ter a mesma raiz cultural?
- Exatamente. E apesar disso Santo Tomás é muito respeitoso, cauteloso e não se quer meter em uma crítica à pessoa de Maomé porque não tem conhecimento de primeira mão, não lhe constam as coisas que se dizem dele.
- Uma posição muito científica.
- Sim, Santo Tomás era uma mente científica de primeiríssima ordem, como discípulo de Santo Alberto Magno, o iniciador da ciência medieval.
Quanto à segunda grande crítica que se faz ao Islã, sua concepção da guerra santa, ele está cheio de instigações ao combate. E mais, o Paraíso não será acessível àqueles que não tenham combatido de alguma forma ao infiel. O Alcorão é muito explícito nesse sentido: “Destruí-los-ás ainda que se ocultem em elevadas torres”, diz o versículo. E não se pode ser amigo de cristãos nem de judeus.
- Ou seja, não é uma religião de paz, como se costuma argumentar...
- Não, não. A paz é o objetivo final, mas quando todo o mundo se tenha convertido. Esse é o ponto. Nisso Santo Tomás tem uma crítica. Diz que o Islã incita ao combate e o dever dos cristãos é defender-se. Mas um cristão não pode obrigar um muçulmano a converter-se ao Cristianismo, não pode obrigá-lo a crer, porque crer é algo que depende da vontade, que é livre e intangível.
Por sua vez o Islã obriga sim a crer. E isso gerou uma série de situações, porque os djimmi, como chamam eles aos cristãos, eram os únicos obrigados a pagar impostos, com o que conseguiam que se convertessem para os não pagar, embora privadamente continuassem praticando sua religião cristã. Isso produzia uma série de descalabros econômicos nos califados que é importante destacar.
O terceiro grande conjunto de críticas se refere à noção do Paraíso que expressa o Alcorão. Trata-se de um Paraíso absolutamente carnal, tal como pode ser imaginado por um beduíno em uma longa travessia pelo deserto. O primeiro de tudo são as mulheres – descritas carnalmente – que vão ser encontradas no Paraíso, o que leva a supor serem excluídas do acesso e estarem ali só para satisfação dos guerreiros. São descritos também os prazeres gastronômicos que haverá, certo e determinado tipo de comidas, de vinho; há descrições das vestimentas, com cetins e brocados; as almofadas onde irão se sentar os bem-aventurados para manter conversas elevadas enquanto as taças de vinho são enchidas por ‘doces efebos que só de vê-los já dá água na boca’...
- Não poderiam ser representações emblemáticas?
- É uma boa pergunta, mas é difícil considerar que sejam figuras alegóricas, porque as descrições são muito detalhadas e minuciosas e se supõe que quando as figuras simbolizam outra coisa sempre se apresentam com alguns claros-escuros que dão lugar à interpretação. Mas estas são descrições mais explícitas, nas quais a interpretação não é possível. E ademais, na religião islâmica estão proibidas as interpretações, porque o Alcorão é a palavra de Deus, que não pode ser interpretada, aplica-se literalmente. Precisamente, uma das diferenças entre o Alcorão e a Bíblia é que esta, diferentemente daquele, é passível de interpretação e da análise racional.
- Parece mais o manual de um sibarita que um livro sagrado...
- Essa é a impressão que se tem ao ler essa descrição tão minuciosa e o que leva Santo Tomás a dizer que esta é uma religião própria para gente do deserto não cultivada, em um desprezo manifesto. O que me chamou a atenção é o respeito que tem Santo Tomás pelos filósofos árabes.
- Partindo desses eixos críticos, você acredita possível um diálogo com o mundo islâmico?
- Desde um ponto de vista teórico, se se consideram os valores da sociedade ocidental e mais especificamente dos EUA, eu creria que o diálogo é possível, mas não porque a religião islâmica tenha alcançado um grau de elevação superior, senão porque a cultura ocidental encarnada pelos EUA tem um grau de baixeza, de ruindade, que permitiria um acordo por debaixo da mesa com a cultura islâmica. E a outra coisa é o tema da predestinação, que é comum ao protestantismo e ao Islã.
Quanto à possibilidade de um diálogo espiritual entre o Ocidente verdadeiramente cristão e o Islã, eu creio que não é possível, já que se fundaria só sobre bases mínimas, que sempre levam ao fracasso, como essas alianças políticas que se fazem para derrotar um adversário.
- Estaríamos condenados de forma recorrente a um enfrentamento com o Islã?
- Eu creio que sim, que não podemos escapar disso e tudo que se diga ao contrário é uma ignorância dos textos corânicos, que são muito explícitos nesse sentido, não há forma de chegar a um acordo.
- Mas o mundo islâmico realmente crê a fundo no Alcorão ou é como o Ocidente, que se diz cristão mas o é só de forma?
- Isso vai ao fundo da questão. Eu creio que no mundo árabe se apresentam os mesmos problemas com a fé que os que se encontram no Ocidente. Há esse livro sagrado que prescreve de uma maneira clara e inescusável certas e determinadas coisas e que muitíssimas vezes não é levado em conta. E digo isso porque os muçulmanos que emigram estão felizes de viver segundo o modo de vida ocidental. O grande problema que têm as autoridades religiosas islâmicas que vivem em países ocidentais é como convencer os muçulmanos que levem uma vida de acordo com as prescrições corânicas.
- Em geral são comunidades que não se integram aos países onde vivem, mas que se aproveitam de todos os benefícios da cultura ocidental. Como se entende essa contradição?
- Creio que seja um problema que eles não resolveram e que nem sequer o colocaram, porque justamente uma das coisas que o Alcorão prescreve é a de não fazer demasiadas análises racionais com respeito à religião.
- É possível que o mundo islâmico gere pensadores que façam uma análise reflexiva da realidade?
- De acordo com os testemunhos da história, eu creria que não, porque justamente o que não permite a religião islâmica é o florescimento do que se poderia chamar uma teologia natural, uma filosofia que tenha a ver com a religião. E mais, há um teólogo islâmico, Al Gazel (século XI), que escreve uma obra que se chama Refutação dos Filósofos, onde lhes promete a estes o fogo eterno, quando tentaram fazer esse tipo de elucubrações sobre a natureza de Deus. A obra de Al Gazel foi, por sua vez, refutada por Averróis, cujas obras foram queimadas em fogueira pública pelo califa de Córdoba. E se Averróis houvesse vivido na Arábia ou em um país originalmente islâmico, teria sido condenado à lapidação. Mas vivia na Espanha, que era em tudo uma civilização florescente, onde se cultivava a filosofia, havia escola de tradutores, uma vida intelectual fortíssima e isso impediu de alguma forma que Averróis tivesse um final infeliz.
Por tudo isso creio que não há possibilidade de um diálogo racional, reflexivo sobre a base do Alcorão. É uma dificuldade enorme.”

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